- O Globo
Nem todos os brasileiros são malandros e nem todos os russos são preguiçosos
No meu plano de trabalho, só tocaria neste tema ao final da Copa. Acontece que ele acabou surgindo no Brasil. Miranda deveria ou não cair para que o gol da Suíça fosse anulado? Faltou malandragem?
O lendário personagem nacional Macunaíma reaparece e me dá chance de mostrar que essa figura, de alguma maneira, não é estranha aos russos. Eles têm seu Macunaíma. Não veio de lendas indígenas, mas de um romance escrito em 1859 por Ivan Gonchárov: “Oblómov”.
Na verdade, o personagem russo não tem a esperteza de Macunaíma. O traço que os une fortemente é a preguiça. Oblómov era um nobre que apenas se movia da cadeira para a cama e se recusava a fazer outra coisa, além de pensar. Seu símbolo era o roupão, assim como a rede era o de Macunaíma.
O oblomovismo chegou a ser descrito como um problema nacional. O próprio Lênin manifestava-se sobre ele em seus discursos, advertindo que era impossível construir um país com a preguiça de Oblómov. Traduzindo o discurso para um português mais coloquial, creio que estava pedindo apenas o que o saudoso Hugo Carvana dizia nos seus filmes: vai trabalhar, vagabundo.
Quando Mário de Andrade adaptou Macunaíma, creio que mirou também numa possível reflexão sobre a ambiguidade, a capacidade criativa, enfim, elementos positivos do “caráter nacional”.
Tolstoi, um grande escritor, considerado quase um santo, também julgava Oblómov um grande romance, digno de ser lido por todos. Talvez por sua inclinação mística ele visse no romance o grande dilema que atravessa a História: qual é o melhor caminho, a ação ou a meditação?
O fato de Macunaíma ser também esperto, e Oblómov, apenas preguiçoso não significa que os russos são sempre inocentes.
Houve muitos casos aqui de gente enganada por motoristas. O preço das corridas foi, várias vezes, multiplicado por dez. Eu mesmo tive problemas, pois, depois de acertar um preço, na hora de pagar o motorista alegou que não tinha troco para mil rublos.
Mas também houve motoristas maravilhosos. Um deles telefonou para um jornalista que se esqueceu de pegar o dinheiro de um depósito para que ele não o perdesse.
Numa das minhas viagens, com mais equipamento, quase esqueço a pequena câmera compacta no banco. Eu a comprei precisamente para o trabalho de rua. Sacha, o motorista, me segurou pelo braço e perguntou: vai deixar a câmera para o próximo passageiro?
Por essas coisas, acho que não devemos ficar tão deprimidos com os brasileiros que assediaram uma russa, fazendo-a cantar obscenidades em português.
Brasileiros simpáticos e solidários não faltam por aqui. O chamado “caráter nacional” é uma ficção, embora tanta gente graúda no Brasil queira nos convencer de que exageramos quando afirmamos que, no mundo político, a corrupção é uma cultura a ser demolida, e não acariciada com sucessivos habeas corpus.
O melhor é seguir Tolstoi e Mário de Andrade e tentar descobrir, por trás da lenda de Macunaíma e do personagem Oblómov, as questões que nos fazem realmente refletir.
Se os russos fossem realmente preguiçosos, não teriam construído um império nem vencido uma guerra mundial, algo que no Ocidente às vezes é subestimado. Se os brasileiros vivessem de esperteza, como explicar os milhões que trabalham de sol a sol e perdem grande parte de sua existência no transporte coletivo?
No fundo, estamos todos correndo atrás da bola.
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