quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Congresso deveria mudar lei leniente com garimpo ilegal

O Globo

‘Jabuti’ em Medida Provisória de 2013 supõe boa-fé de vendedor, dificulta rastrear ouro e agrava a violência

É inegável que cabe ao governo Jair Bolsonaro a maior parcela de responsabilidade pela crise humanitária deflagrada com a invasão do garimpo ilegal na reserva ianomâmi em Roraima. Está comprovada a omissão reiterada das autoridades ante pedidos de socorro aos indígenas. Mas a crise não nasceu do nada. Há anos o produto ilegal do garimpo chega a distribuidoras de ouro e joalherias, sob o beneplácito de dispositivos legais lenientes com a procedência, que escancaram as portas do mercado ao tráfico.

A principal responsável pelo fim dos controles na compra de ouro é a Lei 12.844, de 2013. Ela passou a assumir boa-fé dos vendedores, facilitando a venda do minério dos garimpos ilegais. A complacência tem origem nas emendas feitas numa Medida Provisória sobre produtos agrícolas pelo deputado Odair Cunha (PT-MG), a pedido da associação nacional que congrega empresas desse mercado, a Anoro.

O “jabuti” contrabandeado para a MP baixada pela então presidente Dilma Rousseff aplainou o terreno para os garimpeiros, desde então estimulados a invadir terras indígenas. Justificada pela necessidade de desregular o mercado de ouro, a lei do garimpo permitiu também que prestadores de serviços, como pilotos, fornecedores de comida e combustível também pudessem vender o minério nos Pontos de Compra de Ouro (POCs) da região.

Uma das consequências mais nefastas da nova corrida do ouro na Amazônia foi o progressivo domínio do crime organizado sobre a prospecção do metal, com a consequente alta nos índices de homicídio. No estudo “A história de ouro e sangue: as consequências da desregulação do mercado na violência local”, os pesquisadores do Insper Leila Pereira e Rafael Pucci demonstraram com rigor que bem antes de Bolsonaro o garimpo ilegal já era um foco central da explosão de violência na Amazônia.

Eles constataram que, a partir de 2013, a taxa de homicídios em municípios da região com menos de 200 mil habitantes e extração ilegal de ouro cresceu em relação às de cidades sem ouro ou com extração legal. Em razão disso, os homicídios subiram 60% na Amazônia entre 2006 e 2019, período de estabilidade noutros estados. A hipótese usada para explicar a alta não é complexa. Mais competição na mineração ilegal, onde direitos de propriedade não são bem definidos e inexistem mecanismos de mediação de conflitos, leva a disputas violentas, ainda mais considerando o valor alto do ouro e sua liquidez.

Os pesquisadores trabalharam as estatísticas para evitar que os crimes de madeireiros ilegais e outros grupos criminosos inflassem artificialmente os dados. Concluíram que, onde há garimpo ilegal de ouro, existe uma taxa anual adicional de 8,5 assassinatos por 100 mil habitantes. No período de 2006 a 2019, nos municípios sem garimpeiros ilegais, os homicídios caíram 0,48 ponto.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, defende a mudança da lei que, com base no princípio da boa-fé, abriu a Amazônia para aventureiros e criminosos. Além de empregar as forças de segurança para retirar os garimpos ilegais das reservas indígenas e de toda a região, tal mudança é essencial. Só com mecanismos de rastreamento do ouro — a exemplo dos que já existem nos mercados de carne ou madeira — será possível expor os traficantes e acabar com os incentivos ao garimpo ilegal.

Tapar rombo do ICMS ficou mais fácil após avanço nas conversas com estados

O Globo

Negociação aproximou a oferta do governo federal das demandas estaduais. Tesouro vê solução próxima

Foi positivo o avanço na negociação entre os governadores e o Tesouro Nacional para chegar a um acordo sobre a reposição das perdas na arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). A solução para uma das heranças do governo de Jair Bolsonaro é esperada para breve. Virá em boa hora.

Desesperado para alavancar sua candidatura à reeleição, Bolsonaro cortou em junho o ICMS sobre combustíveis, comunicações e energia elétrica. Na época, a equipe econômica argumentava que a situação fiscal dos estados e municípios passara por “melhoria significativa” e que promover o corte para conter a inflação seria responsável, além de justo. Não era nem uma coisa, nem outra. Bolsonaro queria baixar o preço dos combustíveis na marra.

O dinheiro que aliviava o caixa nos governos estaduais ainda resultava de transferências da União durante os piores anos da pandemia, quando o salário do funcionalismo — maior gasto em todas as esferas de governo — ficou congelado. Em 2022, os governadores voltaram a gastar como antes, concederam reajustes, a folga no caixa desapareceu, e não tardou para que o corte no principal imposto estadual deixasse um rombo.

Foi esse o quadro encontrado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. No início das negociações entre o Tesouro e os governadores para tratar da reposição das perdas, os estados estimavam o total em R$ 45 bilhões, e a União oferecia R$ 13 bilhões. Recentemente, as cifras estavam mais próximas: R$ 30 bilhões e R$ 24 bilhões, respectivamente.

Em entrevista recente, o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, afirmou que a solução não é simples, mas que acredita num resultado equilibrado. “Vamos virar a página desse conflito federativo e seguir em frente”, disse. De acordo com ele, haverá espaço no Orçamento para acomodar o gasto.

Uma vez feito o acordo sobre o valor, será necessário discutir prazo e forma. O governo federal pediu que a recomposição das perdas seja feita dentro dos quatro anos de mandato. Alguns estados obtiveram no Supremo Tribunal Federal (STF) decisões liminares para descontar a perda dos pagamentos de dívida com a União. Estados que não devem precisarão receber de outra maneira.

Bolsonaro usou a política econômica com objetivos eleitoreiros. O resultado foi a desordem tributária previsível, com estados aumentando as alíquotas de ICMS de outros produtos para cobrir despesas. Agora a ambulância do Tesouro foi chamada para tapar o buraco. O Brasil já deveria ter aprendido que não existe desconto mágico na bomba do posto de gasolina, nem na conta de luz.

 Guerra, 1 ano

Folha de S. Paulo

Com Ucrânia invadida, economia patina e embate entre Rússia e Ocidente se acirra

A brutal invasão russa da Ucrânia, desenhada para colocar de joelhos o governo de Kiev em poucos dias ou semanas, chega na sexta-feira (24) a seu primeiro ano.

É o testemunho de erros táticos, que impediram a antecipada rápida vitória russa, e de fracassos estratégicos, como o pedido de entrada da Suécia e da Finlândia na Otan, a aliança militar ocidental cujo convite para a adesão ucraniana foi um "casus belli" alegado por Vladimir Putin para agir.

Trata-se de uma efeméride funesta, a começar pelo preço pago em sangue. Não há estatísticas confiáveis, mas estimativas ocidentais apontam em até 280 mil o número de mortos e feridos beligerantes, e talvez 40 mil civis ucranianos.

A destruição da infraestrutura do calejado país europeu somaria, se o conflito parasse hoje, US$ 350 bilhões, diz o Banco Mundial.

A economia global foi chacoalhada devido ao impacto sem precedentes das sanções lideradas pelo Ocidente para punir a Rússia e tentar secar seu financiamento.

O remédio até aqui não logrou curar a doença, já que os russos tiveram contração de 2,1% de seu PIB em 2022, não a fatal derrocada prevista, e conseguiram boias de salvação ao se apoiarem em parceiros que não aderiram às sanções, como China, Índia, Turquia e Brasil.

Já o paciente sofreu, com índices inéditos de inflação mundo afora, EUA e Europa à frente, devido ao impacto nos mercados de energia e de alimentos —nos quais a Ucrânia também é ator relevante.

Houve, claro, ajustes ainda em curso, como a descontinuidade da dependência alemã do gás russo, um legado tóxico da celebrada primeira-ministra Angela Merkel.

A guerra extrapolou, há muito, o Leste Europeu. Provam essa observação os dois principais eventos que antecederam o primeiro ano da invasão: o discurso de Putin anunciando a suspensão do último tratado de limitação a armas nucleares existente e uma visita de Joe Biden, seu adversário americano, a Kiev e Varsóvia.

O jogo, como o russo descreveu em sua fala com os tons apocalípticos usuais, é entre o Kremlin e a Casa Branca. Volodimir Zelenski, o comediante eleito presidente que tornou-se herói da resistência de Kiev, ficou em segundo plano.

Segundo o Instituto para Economia Mundial de Kiel (Alemanha), dos US$ 150 bilhões em ajuda mundial à Ucrânia até aqui, US$ 60 bilhões de natureza militar, os EUA respondem por US$ 78 bilhões —0,4% de seu PIB, o que garante o caráter global à guerra.

A completa opacidade acerca do fim do conflito, que ainda se insinua distante, apenas aumenta a certeza de que o dia 24 de fevereiro de 2022 abriu um novo capítulo na história da globalização.

Prejuízos estratégicos

Folha de S. Paulo

Estatal de chips mostra que o Estado custa a se livrar de estruturas ineficazes

O governo federal dispõe de estatais que, embora tenham nome e condição de empresas, não geram receitas suficientes para manter sua operação e dependem do dinheiro do contribuinte. Na prática, são repartições públicas, mas de propósitos nem sempre claros.

Um desses casos era o do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. (Ceitec), fabricante de semicondutores criado em 2008, no segundo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e em processo de liquidação decretado por Jair Bolsonaro (PL). Neste mês, Lula criou um grupo de trabalho para avaliar o relançamento da companhia.

Seria interessante que o petista recordasse suas palavras de 13 anos atrás, durante a inauguração da fábrica do Ceitec: "Acabou o tempo, aquele negócio de o cara ter uma empresa pública e achar que ela tem de ser deficitária. Isso aí é bobagem de quem quer ser deficitário, eu quero é lucro".

"Agora tem de ser tudo superavitário, porque senão o Estado quebra", acrescentou.

Pois a estatal do chip foi deficitária ao longo de uma década de existência, até ser incluída no programa de privatização. A venda não ocorreu por falta de interessados.

O Ceitec foi uma das experiências examinadas no livro "Para Não Esquecer: Políticas Públicas que Empobrecem o Brasil", organizado pelo economista Marcos Mendes e publicado no ano passado.

Na obra, Amaro Gomes e Francisco Sena apontam que a empresa, que contava com 180 funcionários no início da liquidação, acumulou prejuízos de R$ 175 milhões entre 2008 e 2020, tendo consumido mais R$ 1 bilhão em aportes do Tesouro —e sem atingir a prometida relevância no mercado nacional.

A União ainda sustenta 18 estatais dependentes do Orçamento federal, de acordo com boletim do terceiro trimestre de 2022. Boa parte delas foi instituída e é mantida em nome de motivos "estratégicos", a exemplo do Ceitec. No ano passado, contavam com R$ 24,4 bilhões em verbas e 82 mil servidores.

Entre elas está a Embrapa, frequentemente citada como exemplo virtuoso. Outras teriam dificuldade em preencher critérios de interesse público, como a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a Codevasf, de obras regionais, ou a Imbel, de material bélico.

Por empreguismo, interesses corporativos, aparelhamento político ou ideologias obsoletas, o Estado brasileiro custa a se livrar de estruturas perdulárias e ineficazes.

Futuro sombrio para a geração covid

O Estado de S. Paulo.

Estudo do Banco Mundial estima que choque da pandemia na educação pode roubar até 10% da renda futura dos estudantes de hoje; governos precisam levar esse cenário a sério

Num dia qualquer de 2019, na China, um micro-organismo desconhecido saltou de um animal ou tubo de ensaio para um corpo humano. Foi como se um meteoro tivesse atingido o planeta. Em 2020, as pessoas confinadas em suas casas viam saltar em suas telas cifras cada dia mais apavorantes de hospitalizados e mortos, sobretudo entre idosos. Adultos em idade de trabalho, sobretudo entre os pobres, viram suas rendas e empregos serem dizimados. Até dezembro de 2021, houve 15 milhões de mortes excedentes no mundo. Só em 2020, mais de 70 milhões caíram na extrema pobreza, que aumentou 11% em relação a 2019.

Mas sob esse cataclismo ultravisível a todos começava uma tragédia oculta e silenciosa. O que aconteceu com as crianças e jovens? O impacto, nesse caso, não foi como de um meteoro, mas de uma pedrinha lançada num lago. No início, atinge só um ponto minúsculo, mas à medida que as ondas se propagam em círculos concêntricos, ela afeta toda a superfície. Os efeitos são quase imperceptíveis hoje, mas, ao longo de anos ou décadas, podem ser catastróficos. Tanto pior quando há uma tendência a ignorá-los.

É natural. O mundo jamais esquecerá a pandemia. Mas à medida que o vírus cede à imunização, há um esforço para cristalizá-la no passado, virar a página, retomar a “normalidade”. Nem por isso os efeitos sobre as novas gerações deixarão de se propagar. Se não forem enfrentados, esses efeitos tendem a se multiplicar, como uma minúscula ondulação que se avoluma até virar um tsunami.

“A pandemia causou um colapso oculto, mas massivo, no capital humano dos jovens em momentos críticos do ciclo de vida”, advertiu o Banco Mundial no relatório Colapso e Recuperação. Os estudantes de hoje podem perder até 10% de seus ganhos futuros por causa dos choques na educação provocados pela covid-19. Para as crianças na primeira infância, o déficit cognitivo e emocional pode se traduzir em uma queda de 25%.

No auge da pandemia, a perda de investimentos em saúde e educação para a primeira infância levou a quedas drásticas no desenvolvimento de habilidades cognitivas, linguísticas, socioemocionais e motoras, além de déficits nutricionais e vacinais. Para as crianças em idade escolar, o fechamento das escolas acarretou imensas perdas de aprendizagem e aumento nas taxas de evasão. Entre os jovens de 15 a 24 anos, aumentou o contingente dos que não trabalham nem estudam. Os que se iniciavam no mercado de trabalho perderam empregos ou oportunidades de emprego, e renda.

Todos esses impactos foram maiores entre as camadas e países de baixa renda. “Salários mais baixos, mais pobreza, mais desigualdade e menos crescimento são uma mistura explosiva”, alerta o relatório. É imperativo agir agora para construir resiliência do capital humano dos jovens.

Entre as ações imediatas e emergenciais para as crianças na primeira infância, é preciso foco na vacinação e suplementação nutricional, mais acesso à educação pré-primária e programas de assistência aos pais, especialmente por meio de transferência de renda às famílias vulneráveis. As crianças em idade escolar precisarão de mais tempo de instrução e tutoria para recuperar o tempo perdido. Os currículos também terão de ser adaptados a essas perdas e focar no ensino dos fundamentos de cada disciplina. Também será preciso lançar mão de estratégias especiais para minimizar os riscos de evasão, incluindo aliviar restrições financeiras que obstaculizam a frequência escolar. Para os jovens, será preciso investir em programas de formação profissional, intermediação de emprego e capacitação para o empreendedorismo.

“As pessoas com menos de 25 anos hoje, ou seja, as mais afetadas pela deterioração do capital humano, representarão mais de 90% da força de trabalho em idade ativa em 2050”, alertou Norbert Schady, um dos autores do relatório. “Reverter o impacto da pandemia sobre elas e investir em seu futuro deve ser a prioridade mais alta para os governos. Caso contrário, essas tropas representarão não apenas uma, mas várias gerações perdidas.”

Que o novo Minha Casa seja novo mesmo

O Estado de S. Paulo.

No relançamento do programa, governo acerta ao priorizar famílias mais pobres, mas não pode repetir erros como construir casas distantes do centro e entregues em péssimas condições

O governo relançou o Minha Casa Minha Vida (MCMV), programa habitacional que vigorou de 2009, no segundo mandato do presidente Lula da Silva, a 2020, quando foi substituído por sua versão bolsonarista, o Casa Verde e Amarela. Em sua nova roupagem, o Minha Casa Minha Vida pretende atender famílias com renda mensal de até R$ 8 mil, na área urbana, e renda bruta familiar anual de até R$ 96 mil, na zona rural.

Acertadamente, o governo Lula decidiu retomar a chamada faixa 1 e dar prioridade às famílias mais pobres, com renda máxima de R$ 2.640 mensais, na área urbana, e de R$ 31.680 anuais, na área rural. Para este público, entre 85% e 95% do valor do imóvel será bancado pela União, e o mutuário poderá financiar o restante.

Única faixa a ter direito a subsídios diretos do Tesouro Nacional, o público da faixa 1 começou a ser deixado de lado há alguns anos, mas foi completamente abandonado durante a administração de Jair Bolsonaro. A opção foi privilegiar as demais faixas, que tinham acesso a financiamentos com juros mais baixos, mas não recebiam nenhuma ajuda da União. No ápice dos cortes, Bolsonaro reservou, no Orçamento de 2023, irrisórios R$ 34,2 milhões para o Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), que banca a construção das casas subsidiadas, paralisando milhares de obras por falta de recursos.

Com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, o governo reservou R$ 9,5 bilhões para o fundo e reverteu parcialmente a decisão. Rapidamente, o Executivo conseguiu concluir e entregar 2.745 casas em diversos pontos do País. Ainda é pouco, mas é um passo importante na direção do resgate da cidadania e da dignidade da parcela mais vulnerável da população.

Em 2019, dado mais recente disponível, a Fundação João Pinheiro estimou o déficit habitacional brasileiro em 5,9 milhões de moradias. A pandemia de covid-19 certamente agravou esse cenário de forma avassaladora – famílias inteiras vivem em barracas nas ruas das principais capitais do País. Não é preciso ser especialista em políticas públicas para saber que, diante da escassez de recursos, é preciso fazer escolhas que privilegiem os mais pobres. O governo Jair Bolsonaro, no entanto, fez o contrário, e estrangulou o programa em detrimento de vários outros gastos questionáveis, entre eles as bilionárias e paroquiais emendas de relator.

Em sua nova versão, o MCMV parte de premissas mais adequadas. A ideia, segundo o governo, é privilegiar entregas a famílias chefiadas por mulheres; compostas por pessoas com deficiência, idosos, crianças e adolescentes; em situação de risco e vulnerabilidade; em áreas em situação de emergência ou de calamidade; em deslocamento involuntário em razão de obras públicas federais; e em situação de rua.

O relançamento do programa é, portanto, uma excelente oportunidade para compará-lo às experiências anteriores e assegurar que os mesmos erros não sejam repetidos. É muito positivo que a opção seja a de privilegiar empreendimentos em regiões já abastecidas por infraestrutura, haja vista que o MCMV, nos governos Lula e Dilma, costumeiramente alocava famílias em periferias e regiões muito distantes dos centros urbanos. Não foram poucas as vezes em que imóveis foram entregues sem ser concluídos. Há relatos de conjuntos habitacionais que foram tomados por milícias; outros foram construídos sem o mínimo de qualidade e estão deteriorados.

A meta de contratar 2 milhões de novas unidades até 2026, anunciada pelo governo, será insuficiente para dar fim ao déficit habitacional ao longo desse período. O MCMV, portanto, é uma entre várias iniciativas que precisam ser coordenadas em parceria com municípios, incluindo o aluguel social e soluções temporárias. É necessário ir além dos interesses das construtoras e permitir a inclusão de imóveis usados no programa. Além de retomar obras paradas, é fundamental aperfeiçoar procedimentos orçamentários para garantir que isso não volte a ocorrer. Limites de renda e valores dos imóveis demandam atualização periódica. Há muito a fazer e não há tempo a perder.

Perigoso legado de Bolsonaro

O Estado de S. Paulo.

Número de armas nas mãos de particulares saltou de 1,3 milhão para 2,9 milhões, um evidente absurdo

 

A atuação do então presidente Jair Bolsonaro para facilitar o acesso a armas de fogo durante seu mandato produziu um dado impressionante: o número de armas nas mãos de particulares mais do que dobrou entre 2018 e 2022, passando de 1,3 milhão para 2,9 milhões. Eis o resultado concreto da pregação e das ações do então presidente para flexibilizar restrições ao armamento da população. Hoje a sociedade brasileira está mais armada, e isso traz riscos. Um legado com efeitos de curto, médio e longo prazos.

Como noticiou o Estadão, dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz e pelo Instituto Igarapé mostram que o acervo particular no Brasil cresceu ano a ano durante o governo Bolsonaro. Não tinha como ser diferente: o acesso a armas, inclusive a fuzis, foi um dos temas explorados pelo então candidato na campanha eleitoral de 2018, com sua ideia equivocada de que as deficiências da segurança pública deveriam − como se isso fosse possível − ser supridas por cidadãos devidamente armados. Um disparate capaz de gerar consequências em sentido contrário, sobretudo num país já tão violento como o nosso.

Tão logo assumiu o cargo, em janeiro de 2019, Bolsonaro passou a assinar decretos e a recorrer a outras medidas infralegais para facilitar o acesso da população a armas de fogo. Foi assim que flexibilizou a exigência de comprovação de “efetiva necessidade” para ter arma em casa ou permitiu que Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) adquirissem até 60 armamentos, dos quais 30 de uso restrito das forças de segurança, além de 180 mil balas por ano. Um exagero injustificável. Vale lembrar que algumas das iniciativas se deram ao arrepio da lei e, por isso, foram barradas pelo Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, infelizmente, o boom de armas de fogo está longe de ser surpresa. Cabe ao atual governo agora dar sequência às medidas já adotadas para corrigir equívocos estimulados nos últimos quatro anos. É evidente que tamanho aumento do acervo particular impõe um cuidado especial de fiscalização. De imediato, é preciso verificar se as pessoas que adquiriram esses armamentos cumprem os requisitos legais, da mesma forma que se faz necessário adotar mecanismos de controle mais rigorosos, combatendo fraudes para evitar que criminosos consigam comprar armas legalmente − um efeito indesejável da política de acesso desenfreado estimulada por Bolsonaro.

É acertada a iniciativa do atual governo de exigir que todas as armas de fogo sejam registradas no Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal, sob pena de apreensão. Lamentavelmente, a liberalização do acesso no governo anterior foi acompanhada de descontrole por parte do poder público – a ponto de que nem o Exército se disse capaz de mapear as armas adquiridas por CACs, o grupo que mais cresceu nos últimos anos entre os detentores de armamentos, de acordo com o balanço do Sou da Paz e do Igarapé.

A melhoria das condições de segurança pública é um imperativo, mas a violência legítima é monopólio do Estado, que não pode terceirizar essa responsabilidade permitindo que os cidadãos se armem sem qualquer controle.

A difícil tarefa de recuperar o tempo perdido na educação

Valor Econômico

Com menor capital humano, produtividade e competitividade da economia diminuem

O novo governo comemorou o aumento de 1,5% das matrículas constatado nas escolas brasileiras entre 2021 e 2022 pelo mais recente Censo Escolar da Educação Básica. As inscrições cresceram 10,6% na rede privada, e tiveram um ligeiro declínio na pública. O número de estudantes atingiu 47,4 milhões, com acréscimo de 714 mil. Entusiasmo especial houve com a expansão das matrículas em creches, de 29,9% na rede privada de ensino e de 8,9% na pública, ultrapassando os índices observados no período pré-pandemia em ambas. Outro destaque foi a procura 20,4% maior pelos cursos em período integral.

O ministro da Educação, Camilo Santana, avaliou que o país está retomando os índices registrados antes da covid-19. A cobertura escolar na faixa das creches, que vai até os 3 anos, ficou em 36%, superando ligeiramente os 35,6% de 2019, antes da pandemia. No entanto, não basta voltar aos patamares de matrículas anteriores à pandemia. Mais do que tudo será necessário recuperar o tempo perdido. Parece difícil atingir o objetivo de ter 50% das crianças de até 3 anos nas creches no próximo ano, estabelecida pelo Plano Nacional de Educação.

O próprio ministro reconheceu que há pouco mais de 1 milhão de crianças e jovens fora da escola. Pouco mais da metade dessas crianças tem de 4 a 6 anos, fase importante do desenvolvimento cognitivo e emocional, do aprendizado e da socialização. De acordo com estimativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a parcela de crianças sem frequentar a pré-escola girava em torno de 8% no ano passado, índice bem maior que o verificado no ensino fundamental (0,3%).

Se nem todas as crianças estão nas escolas, as que estão tiveram perdas severas de aprendizado durante a pandemia. Estudo recente do Banco Mundial sustenta que, com as escolas fechadas, as crianças não só deixaram de aprender como também esqueceram o que já haviam aprendido. Não foram raros os relatos de crianças que não lembravam mais o nome da professora e dos colegas.

O Banco Mundial calcula que, a cada 30 dias de fechamento das escolas, os alunos perderam cerca de 32 dias de aprendizagem. As aulas presenciais foram suspensas por 5,9 meses na média no mundo, segundo o estudo - uma perda de aprendizado de 6,2 meses. Já no Brasil, as escolas ficaram fechadas por dez meses, em média, o fosso a superar é maior, e os déficits potenciais são mais amplos, especialmente entre os menores, que podem ter repercussões pelo resto da vida dessas crianças. Inclusive no mercado de trabalho.

O déficit cognitivo ocorrido durante a pandemia pode resultar entre as crianças de até 5 anos em uma renda 25% menor na idade adulta, de acordo com o estudo do Banco Mundial. Para a população na faixa de 6 a 14 anos, as perdas de rendimento também existem, mas são menores, ao redor de 10% ao longo da vida, porque já superaram a fase cognitiva mais significativa.

Há pouco menos de um ano, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou análise semelhante que estimava em 9,1% a perda de renda das gerações futuras no Brasil em consequência das deficiências de ensino na pandemia, a terceira maior entre os países do G-20, só atrás da Indonésia e do México.

Superar esses problemas é particularmente desafiador no Brasil devido à pobreza em suas múltiplas dimensões, que aflige 32 milhões de jovens até 17 anos e agrava o quadro, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Em seu cálculo, a Unicef leva em consideração os afetados por um ou mais aspectos da pobreza, que incluem trabalho infantil e privações de acesso a moradia digna, água, saneamento, informação, renda, alimentação e educação.

Para o Banco Mundial, algumas ações podem reduzir ou ajudar a evitar a perda de capital humano dessas crianças e jovens. Entre elas, políticas públicas que priorizem a transferência de renda para famílias com crianças pequenas e programas que promovam maior estímulo cognitivo e socioemocional nas famílias; campanhas de atualização da carteira de vacinação e suplementação nutricional, além da ampliação da cobertura da educação infantil. Deve haver também um esforço para se evitar a evasão escolar, que aumentou na pandemia entre as crianças da pré-escola e diminuiu entre os mais velhos.

Algumas dessas medidas já estão em curso no novo governo, mas o trabalho apenas começou. São dramas individuais que vão afetar o país, influenciando a produtividade e a competitividade da economia, reduzindo o capital humano.

Um comentário:

Anônimo disse...

"Desesperado para alavancar sua candidatura à reeleição, Bolsonaro cortou em junho o ICMS sobre combustíveis, comunicações e energia elétrica. Na época, a equipe econômica argumentava que a situação fiscal dos estados e municípios passara por “melhoria significativa” e que promover o corte para conter a inflação seria responsável, além de justo. Não era nem uma coisa, nem outra. Bolsonaro queria baixar o preço dos combustíveis na marra."
Jegues & Bolsonaro, Bolsonaro & Jegues - a dupla das trevas!
Tempo em que os "Mercados" pouco criticavam o "governo"!
Corte de impostos soava como música para os "liberais"...