O Estado de S. Paulo
É com preocupação que vemos o que se divulga
equivocadamente: um conflito entre aqueles organismos. Causa péssima
repercussão. E não é verdadeiro
Alardeia-se conflito entre o Senado Federal e
o Supremo Tribunal Federal (STF). Péssimo para o País, no plano interno e no
internacional. Não pode haver desarmonia entre o Congresso Nacional e o
Judiciário. Não é permitido. A Constituição determina a harmonia entre os
Poderes. Desarmonia, portanto, é inconstitucional. Mais ainda: é negação da
vontade do povo expressada no texto constitucional. Explico melhor para
justificar a afirmação. E, ao fazê-lo, direi trivialidades. Mas é incrível
como, nos dias atuais, é importante ressaltar obviedades. Vamos a elas.
A Constituição não é criação de parlamentares constituintes. Ela é a expressão escrita da vontade popular. Quando se pretendeu reconstituir o Estado brasileiro, o que se deu em 5 de outubro de 1988, não era possível reunir cerca de 180 milhões de pessoas para dizerem como desejavam o novo Estado. O povo (ou seja, os eleitores, cidadãos brasileiros) disseram: “Vamos escolher representantes, deputados e senadores para, em nosso nome, reconstituírem o Estado brasileiro”. Estes chegaram às Casas Legislativas a fim de obedecerem a procuração, o mandato, que lhes foi dado para, em Casa única, a Assembleia Nacional Constituinte, cumprirem o mandato de representação popular. E, ao dizerem sobre a vontade do mandante (povo), receberam um recado no preâmbulo da Constituição.
Este, o preâmbulo (de preambulare, antes do
texto escrito), a que se dá pouca importância, contém determinação política aos
que redigiram a Constituição, tanto que diz: “Nós, representantes do povo
brasileiro (reconhece que é autoridade ‘constituída’), reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias (...)”. Portanto, a paz foi a primeira determinação
do povo reproduzida na
Constituição. Dou exemplo: o artigo
estabelecedor de que todos são iguais, não podendo haver preconceito de raça,
cor, credo religioso, tem um objetivo: unam-se todos.
Significa que não pode haver discussão de
ideias, de conceitos, de programas? Não. E isso decorre do artigo 1.º, criador
do “Estado Democrático de Direito”. Democracia envolve debate de ideias,
contrariedade, controvérsias. Nunca, porém, agressões verbais e físicas, seja a
pessoas ou a prédios públicos, como ocorre atualmente. No plano internacional,
logo no artigo 4.º, o povo disse que as relações internacionais devem pautar-se
pela defesa da paz (inciso VI) e solução pacífica das controvérsias (inciso VII).
Mais: declara que os artefatos nucleares só podem ser usados para fins
pacíficos (Constituição federal, art. 21, XXIII, a). Nada de beligerância,
portanto, nas relações internacionais.
A ênfase no fenômeno “paz” é que leva à ideia
da harmonia entre os Poderes, quando se entrega a cada qual competências
determinadas. Cada um é senhor delas. Legislativo legisla, Executivo executa e
Judiciário julga. Este último, ao julgar, aplicará a literalidade do texto
constitucional quando esta é suficientemente clara ou fará interpretação
sistêmica (exame de todo o sistema constitucional) para decidir. Exemplifico: a
fidelidade partidária e o aborto anencefálico não estão na letra da
Constituição, mas o sistema positivo permitiu-lhe essas decisões.
Esta, julgar, é a sua função inquestionável.
Não pode ser afastada ou criticada. Pode, até, declarar a omissão do
Legislativo por meio da ação direta de inconstitucionalidade por omissão ou do
mandado de injunção. Declara, simplesmente, a omissão. Não pode supri-la.
Ao lado de julgar está a função do
Legislativo. A este cabe a última palavra como representante político do povo.
Sendo assim, se houver uma decisão do Judiciário (literal ou sistêmica) com a
qual não concorde, há de expedir nova ordem normativa, por emenda
constitucional ou lei, dependendo da matéria. Assim que promulgado o novo
texto, perde eficácia jurídica a decisão judicial que só vigorará enquanto não
sobrevém nova ordem normativa.
É assim que devem conviver o STF e o
Congresso Nacional. Cada um no desempenho de suas competências.
Daí porque vemos com preocupação o que se
divulga equivocadamente, ou seja, um conflito entre aqueles organismos. Causa
péssima repercussão. E não é verdadeiro. Mas é fruto da litigância que se
estabeleceu no País, do “uns contra os outros” que tomou conta da cultura
nacional, em absoluta dissonância com a Constituição. Esta a razão de havermos
feito a introdução referente à “paz” determinada pelo titular primeiro, inicial
do poder, o povo, às autoridades constituídas, que, por isso, são secundárias e
devem prestar rigorosa obediência à vontade primária – que se acha, reitero, na
Constituição federal.
Hoje, líderes políticos responsáveis e
qualificados como os presidentes Rodrigo Pacheco, Arthur Lira e Luís Roberto
Barroso saberão encaminhar essas questões sem desviar-se do texto magno e
divulgando, sim, a inexistência de conflitos, mas o exercício de competências.
*Advogado, foi presidente da República
Nenhum comentário:
Postar um comentário