O Estado de S. Paulo
O legado de Delfim é mais amplo do que
indicam admiradores e menos feio do que dizem os críticos
Criado por Jô Soares como caricatura do
ministro Antônio Delfim Netto, o Dr. Sardinha combinava duas impropriedades.
Sardinha é peixe, enquanto delfim, ou golfinho, é mamífero. Além disso, o
bordão recitado pela figura caricata – “meu negócio é número” – era um tanto
enganador. Ex-professor de econometria, o ministro entendia de economia
agrícola, e sua tese de livre-docência tratava do café. Mas a personagem era
divertida, assim como era bem-humorado o titular, em diferentes governos, dos
ministérios da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento.
Delfim ganhou notoriedade como secretário da Fazenda, em São Paulo, durante o governo de Laudo Natel. Ficou pouco tempo na secretaria. Foi chamado para cuidar das finanças federais no governo do presidente Costa e Silva. Havia condições para a retomada do crescimento, depois de eliminado o risco de hiperinflação pela dupla Roberto Campos-Octávio Gouvêa de Bulhões, na presidência do marechal Castelo Branco.
Além disso, os dois ministros haviam iniciado
uma fase de reformas importantes, como o redesenho do sistema financeiro.
Haviam também criado o Banco Central (BC) e o Banco Nacional da Habitação (BNH)
e implantado a correção monetária, instrumento poderoso para a expansão do
crédito e, muito especialmente, do setor imobiliário.
A nova fase de expansão foi em parte
sustentada, a partir do segundo governo militar, por um conjunto adicional de
reformas. O novo ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, mexeu no câmbio,
encerrando uma longa fase de imobilidade, e criou incentivos à exportação.
Com o câmbio mais flexível e uma nova
concepção de comércio exterior, a indústria ganhou espaço nas vendas externas e
novas condições de crescimento. O protecionismo ainda marcaria por décadas a
atividade industrial brasileira e limitaria suas possibilidades de expansão e
de integração global. Mas, naquele momento, o objetivo central do governo ainda
era expandir, com instrumentos de política interna, as oportunidades de
crescimento.
Delfim Netto nem sempre é lembrado como
pioneiro na flexibilização do câmbio e como reformador do comércio externo. É
mais citado como promotor do chamado milagre econômico, o intenso crescimento
observado entre 1968 e 1973, e às vezes criticado pelo controle de preços e
pela divulgação preferencial dos indicadores de inflação mais favoráveis. Mas
seu legado é mais amplo do que indicam alguns admiradores e menos feio do que
dizem os críticos.
Apesar dos tropeços na segunda metade dos
anos 1970 e no começo do decênio seguinte, a abertura exportadora por ele
iniciada produz efeitos até hoje. Parte muito importante dessa herança é a
participação da indústria manufatureira nas vendas ao exterior. Além disso, o
programa de substituição de importações, uma resposta à crise do petróleo
iniciada em 1973, foi um importante estímulo à diversificação industrial,
embora as mudanças tenham perdido impulso no final da década. Mas a semente
sobreviveu e voltou a beneficiar a modernização econômica depois da crise na
metade inicial dos anos 1980.
O professor Sardinha também contribuiu para a
transformação da agropecuária e para sua ascensão à liderança no mercado
internacional. Mais visível a partir da segunda metade dos anos 1980, o
fortalecimento do agronegócio resultou de políticas implantadas na década
anterior. Também muito importantes para esse avanço foram as contribuições de
Alyson Paolinelli, ministro da Agricultura entre 1974 e 1979, e João Paulo dos
Reis Veloso, ministro do Planejamento entre 1969 e 1979.
Delfim Neto nunca renegou seu apoio ao regime
militar, nem sua participação na reunião ministerial onde se acertou a edição
do Ato Institucional n.º 5. Restaurada a ordem democrática, foi eleito deputado
federal por cinco mandatos, participou da assembleia constituinte e manteve
relações amigáveis e de colaboração com o deputado e depois presidente Luiz
Inácio Lula da Silva.
Embaixador na França durante a presidência do general Ernesto Geisel, aproveitou a estada em Paris para frequentar cursos na Sorbonne. Quem o visitou na embaixada, nesse período, pode ter visto em sua mesa alguns dos livros lidos nesse período. Cheio de anotações a lápis, um desses livros era a Fundamentação da Crítica da Economia Política, de Marx.
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