Estevão Bertoni / Folha de S. Paulo
Ex-titular da Fazenda foi de homem forte em
governos da ditadura a interlocutor de Lula
O economista, ex-ministro e ex-deputado
Antonio Delfim Netto morreu nesta segunda-feira (12), em São Paulo. Ele estava
internado havia uma semana no Hospital Israelita Albert Einstein, segundo sua
assessoria de imprensa, por complicações no estado de saúde.
Delfim deixa filha e neto. Não haverá velório
aberto ao público e o enterro será restrito à família.
Ele foi uma figura complexa. O ministro que
assinou em 1968 o AI-5, e era único ainda vivo entre os signatários do ato que
inaugurou os Anos de Chumbo no país, foi também o deputado federal que, 20 anos
depois, chancelou a Constituição de 1988, considerada uma das mais democráticas
do planeta.
Foi o homem forte dos generais durante o
regime militar (1964-1985) e, quase duas décadas depois, um dos principais
interlocutores de Lula nos dois primeiros mandatos do ex-metalúrgico.
O economista e professor da USP soube se
reinventar ao longo da carreira. Dizia em vida ter sido três: o primeiro, um
socialista fabiano, adepto do movimento inglês surgido no século 19 e que
defendia a implantação do socialismo por meio de reformas graduais. O segundo,
o homem do governo militar. E o terceiro, o que contribuiu no fim da vida com
as políticas sociais do primeiro governo Lula (2003-2010).
Sua projeção nacional começou em 1967, quando se tornou, aos 38 anos, o mais jovem ministro do país. Assumiu a pasta da Fazenda de Costa e Silva para só deixá-la em 1974, no fim do governo Médici. No período, ganhou a fama de "czar da economia brasileira". Nos 21 anos de ditadura, comandaria por 13 deles a economia do país.
Alçado do cargo de secretário da Fazenda de
Laudo Natel, em São Paulo, era descrito como um negociador habilidoso que
demolia argumentos contrários com humor e amaciava seus críticos.
Em sua primeira temporada como
"mandachuva do governo", o país viveu de 1969 a 1973 o período
conhecido como "milagre econômico". As taxas de crescimento
registradas naquela época eram superiores a 9% ao ano.
Logo ao assumir o cargo, Delfim anunciou o tabelamento e a redução da taxa de juros e a ampliação do crédito para combater a inflação e acelerar o crescimento. Também aumentou o gasto público e incentivou o investimento privado nas indústrias.
De 1968 a 1973, sob o slogan de
"exportar é o que importa", o PIB do país cresceu 11,1%, a inflação
caiu 19,2%, e o poder aquisitivo da classe média se expandiu. Foi a época de
obras grandiosas, como a Transamazônica, a ponte Rio-Niterói e Itaipu.
Mas nem tudo foram flores para o ministro. A
dívida externa aumentou quatro vezes, o valor real do salário mínimo caiu, e a
população mais pobre viu despencar sua participação na renda nacional. Delfim
passou a ser acusado de "adulador de banqueiros" e responsável direto
pelo arrocho salarial e pela recessão.
Ligeiramente estrábico e gordo, era vítima
fácil dos cartunistas. O que não o incomodava. Desde 1967, colecionava charges
que o representavam e mantinha algumas na parede do escritório.
Emérito fazedor de frases e famoso por ser
irônico e mordaz em seus comentários, dizia que "dívida não se paga, se
administra". E negava ser sua a frase: "Primeiro é preciso fazer
crescer o bolo, para depois reparti-lo", que sempre lhe atribuíram.
Em 1978, poucos anos após o fim do milagre, o
economista admitiu que o modelo adotado em sua gestão não levara em conta a
participação da sociedade, agravando a distribuição de renda. "Nós nos
distanciamos demais do povo", afirmou certa vez.
Para alcançar o que desejara, Delfim tivera
ampla liberdade para mexer na economia. "Usei as condições dadas pelo AI-5
para baixar um decreto-lei com praticamente toda a reforma tributária que eu
queria fazer e mais uma porção de medidas importantes", disse em 1998.
O ministro participara da elaboração do ato
que fechou o Congresso e suspendeu o habeas corpus para presos políticos. Na
assinatura do AI-5, chegou a dizer que não o considerava suficiente.
Em junho de 2013, em depoimento à Comissão da
Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, reafirmou o que já havia dito em
1998: não se arrependia do voto. "Nas condições de informação que tinha
naquela hora, eu repetiria meu voto. Ninguém poderia imaginar a barbaridade da
tortura", afirmou em 1998.
CARREIRA
Paulistano, neto de imigrantes italianos,
Delfim era filho de um funcionário da CMTC, empresa de transportes da
Prefeitura de São Paulo, e de uma costureira. Começou aos 14 anos como contínuo
na Gessy Lever.
Estudou contabilidade e pensou em ser
engenheiro. "Mas o curso levava muito tempo e eu precisava me formar logo
para me sustentar. Acabei virando economista", contou numa entrevista.
Em 1948, entrou em economia na USP e passou a
trabalhar como escriturário no DER (Departamento de Estradas de Rodagem).
Formado em 1951, logo virou professor assistente. Com a tese "O Problema
do Café no Brasil", iria se tornar em 1958 professor catedrático de
economia brasileira da USP.
Antes de enveredar para a política, foi ainda
vice-presidente da Ordem dos Economistas do Brasil e assessor da Associação
Comercial de SP.
Também atuou junto ao governo paulista (na
equipe de planejamento e como secretário da Fazenda) e ao governo federal:
integrou em 1965 o Consplan (Conselho Consultivo de Planejamento).
Sua primeira experiência como ministro durou
até a chegada do general Ernesto Geisel à Presidência, em 1974. Delfim deixou a
pasta com pretensões de se candidatar ao governo paulista. O presidente, porém,
tinha outros planos para São Paulo: Paulo Egydio Martins.
"Eu queria ser governador e estaria
mentindo se dissesse que não fiquei aborrecido [com a decisão de Geisel]. Mas
me acho muito mais feliz por ter sido embaixador. Não teria lido metade do que
li", disse numa entrevista em 1991. Preterido no comando do governo
paulista, foi convidado para assumir a Embaixada do Brasil na França, onde
ficou até 1978.
O período como embaixador lhe renderia uma
acusação, no que ficou conhecido como o "caso do relatório Saraiva".
Raimundo Saraiva Martins, um coronel da reserva que foi adido militar na
França, acusou-o de cobrar comissões ilegais em contratos de venda de
equipamentos franceses para hidrelétricas brasileiras, mas nunca apresentou
provas. Delfim o processou por calúnia.
Sua volta ao governo se deu em 1979, com nova
alternância no comando do país. Virou ministro da Agricultura de João
Figueiredo, mas ficou pouco no cargo: cinco meses, para na sequência assumir a
Seplan.
Tornou-se ministro do Planejamento numa
situação bastante adversa. Foram marcas do período as altas taxas de inflação,
a recessão, o aumento da dívida externa e da miséria. Contestado no cargo,
permaneceu até o fim. Em 15 de março de 1985, quando José Sarney assumiu a
Presidência, Delfim deixou a Seplan.
Em meados daqueles anos 80, veria seu nome
envolvido em outro escândalo: o caso Coroa-Brastel. Foi acusado de desviar
recursos na liberação de empréstimo da Caixa Econômica Federal ao grupo
Coroa-Brastel. O caso foi julgado no STF (Supremo Tribunal Federal), e Delfim,
absolvido.
CINCO VEZES DEPUTADO
Depois de ter comandado a campanha vitoriosa
de Jânio Quadros para a Prefeitura de São Paulo, Delfim foi eleito em 1986
deputado federal pelo PDS. Na época, defendia o bipartidarismo e o voto
distrital. Até 2007, atravessaria os governos Sarney, Collor, Itamar, FHC e
Lula em cinco mandatos consecutivos pelos partidos PDS, PPR, PPB, PP e PMDB.
Foi crítico do governo Sarney e do plano
Cruzado. Em 1992, votou a favor da abertura do processo de impeachment do
presidente Collor. No governo Itamar, considerou eleitoreiro o lançamento do
plano Real. Chegou a elogiar as políticas de privatização de FHC num primeiro
momento, mas criticava a política de juros altos do governo e chamou o tucano
de o "Exterminador do Presente".
Opôs-se à emenda da reeleição, dizendo que o
país poderia viver um "caudilhismo civil". Dizia que FHC quebrara o
país em 1998, ao recorrer ao FMI, e em 2002, levando o setor privado à
falência.
AMIGO DE LULA
Em 2002, aproximou-se de Lula e anunciou
apoio ao candidato no segundo turno, disputado contra José Serra (PSDB). Com a
vitória do petista, tornou-se interlocutor do presidente e chegou a ser cotado
para assumir ministérios, o que nunca ocorreu.
De 2007 a 2009, integrou o conselho curador
da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável pela TV Brasil, cria do
petista. Em setembro de 2009, afirmou: "Lula salvou o capitalismo
brasileiro".
Afastado dos cargos públicos, continuou
contribuindo com as discussões sobre a economia brasileira. Colaborou com
a Folha, com o jornal Valor Econômico e com a revista Carta Capital.
Manteve ainda um escritório de assessoria
econômica chamado Ideias, com o sócio Paulo Yakota. Respeitado por alguns como
economista, desagradava outros por ter sido ministro da ditadura. Em 2000, um
estudante tentou acertá-lo com uma torta durante um seminário na USP.
Em 2011, anunciou que doaria para a
universidade os 250 mil livros de sua biblioteca. "Eu estou ficando velho,
e a USP vai continuar", disse.
Foi casado com Mercedes Saporski Delfim,
morta em 19 de maio de 2011, aos 93 anos. Teve uma filha, Fabiana Delfim, e um
neto, Rafael.
CRONOLOGIA
1º de maio de 1928
Nasce Antônio Delfim Netto na cidade de São
Paulo, filho de José Delfim e de Maria Delfim, ambos de ascendência italiana.
1942-1947
Órfão de pai muito cedo, começa a trabalhar
como contínuo das indústrias Gessy Lever aos 14 anos, passando logo a
desempenhar funções administrativas na empresa. Prossegue os estudos na Escola
Técnica de Comércio e, durante o curso, começa a escrever sobre economia para
os jornais Folha da Tarde e O Tempo
1948
Ingressa na FEA-USP (Faculdade de Economia,
Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo). Vai
trabalhar no DER (Departamento de Estradas de Rodagem)
1951
Preside o centro acadêmico da FEA-USP no
último ano de seu curso superior. Depois de formado, torna-se assistente do
professor Luís Freitas Bueno, catedrático de econometria
1952
Começa a exercer a função de professor
assistente de Estatística Econômica e Econometria, sob orientação do professor
emérito Luiz de Freitas Bueno
1959
Torna-se professor livre-docente com a tese
"O Problema do Café no Brasil". No mesmo ano, é convidado para
integrar a equipe de planejamento do novo governo paulista, chefiado por Carlos
Alberto de Carvalho Pinto.
1965
Ingressa no Consplan (Conselho Consultivo de
Planejamento), órgão de assessoria à política econômica do governo do general
Humberto Castelo Branco (1964-1967), conduzido pelos ministros Roberto Campos
(Planejamento) e Otávio Gouveia de Bulhões (Fazenda). Passa a integrar também o
Conselho Nacional de Economia
1966
Assume a Secretaria da Fazenda do Estado de
São Paulo na gestão Laudo Natel, indicado pelo ministro Roberto Campos, logo
após a cassação do mandato de Ademar de Barros
15 de março de 1967
Nomeado ministro da Fazenda após a posse do
general Artur da Costa e Silva na Presidência da República. Elabora o PED
(Plano Estratégico de Desenvolvimento). Tabela as taxas de juros, incentiva a
ampliação do crédito e introduz um sistema de controle de preços. O PIB
(Produto Interno Bruto) cresce 4,8%, dando início ao período conhecido como
milagre econômico brasileiro
13 de dezembro de 1968
Assina junto com o presidente da República e
demais ministros o AI-5 (Ato Institucional nº 5)
1969
Após o afastamento de Costa e Silva da
Presidência, em agosto de 1969, é mantido no cargo, que exercerá até o final do
mandato do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974)
1975
É indicado embaixador do Brasil na França
pelo presidente Ernesto Geisel, após ser preterido na escolha para governar o
Estado de São Paulo
Março de 1979
Com a posse do general João Batista
Figueiredo na Presidência da República, assume o Ministério da Agricultura por
cinco meses
Agosto de 1979
Assume como ministro-chefe da Secretaria de
Planejamento, após a saída de Mário Henrique Simonsen do cargo. Com o fim do
"milagre", o cenário é de redução no ritmo de crescimento mundial,
piora nas condições de financiamento externo, alta do petróleo e da inflação,
que alcançaria mais de 100% no ano seguinte. Apesar de ser ministro do
Planejamento, atua efetivamente como um ministro da Fazenda, formulando as
principais estratégias econômicas do governo até 1985
1981
Com a contenção dos gastos públicos e a
elevação das taxas de juros, pela primeira vez em muitas décadas, é registrada
contração da economia (-3,5%)
1985
É denunciado pela Procuradoria-Geral da
República por envolvimento no caso Coroa-Brastel. A Câmara dos Deputados negou
pedido do Ministério Público para processar Delfim
1986
É eleito deputado federal constituinte por
São Paulo pelo PDS com mais de 76 mil votos. Exerce o cargo de deputado federal
por cinco mandatos consecutivos, pelo PDS (partido que se tornaria
posteriormente PPR, PPB e PP) e pelo PMDB. Em 2006, recebe 38.085 votos e não
se reelege
1987-1988
Durante a Assembleia Constituinte, foi a
favor da pena de morte, do aborto, da pluralidade sindical, da legalização do
jogo do bicho e do mandato de cinco anos para o presidente José Sarney. Votou
contra a limitação do direito da propriedade privada, a estabilidade no
emprego, o voto aos 16 anos, o presidencialismo, a estatização do sistema
financeiro e o limite de 12% ao ano para os juros reais
29 de setembro de 1992
Vota a favor da abertura do processo de
impeachment do presidente Fernando Collor de Melo
2002
No segundo turno da eleição presidencial,
anuncia seu apoio a Lula
2003
Considerado um importante interlocutor do
novo presidente, é escolhido para ocupar uma vaga no Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social, órgão da Presidência da República
2005
Se filia ao PMDB (partido que foi oposição ao
regime militar) e apoia a reeleição de Lula
2007
É nomeado por Lula para integrar o conselho
curador da Empresa Brasil de Comunicação, estatal responsável pela TV Brasil,
cargo que deixaria em julho de 2009. Permaneceu como interlocutor privilegiado
do presidente, mantendo o tom de crítica à política de juros altos e propondo
em diversas ocasiões cortes na taxa Selic
2018
É um dos alvos da 49ª fase da Operação Lava
Jato, acusado de receber propina do consórcio Norte Energia, que venceu a
disputa em 2010 na licitação para construção de Belo Monte (PA).O ex-ministro
diz que recebeu honorários por consultoria prestada ao consórcio
2021
Escreve sua última coluna para a Folha,
jornal para o qual colaborava desde 1986
2024
Morre em São Paulo aos 96 anos
Fontes: Cepedoc da FGV , FEA-USP e Câmara dos Deputados
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