quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Picotando os clássicos - Hélio Schwartsman

Folha de S. Paulo

Decisão de Flávio Dino que manda tirar de circulação quatro obras jurídicas por preconceito configura censura

Não escrevo hoje sobre a eleição americana porque qualquer coisa que eu dissesse ficaria irrecuperavelmente velha num ritmo ainda mais acelerado do que o do já efêmero jornalismo diário. Volto, portanto, minhas baterias contra Flávio Dino.

O ministro do STF determinou a retirada de circulação de quatro obras jurídicas com conteúdo discriminatório contra mulheres e homossexuais. Os quatro títulos são todos da mesma dupla de autores, os gêmeos Luciano e Fernando Dalvi, que, junto com a editora, também foram condenados a pagar indenização de R$ 150 mil por danos morais coletivos.

As passagens citadas no relatório são de fato constrangedoras na carga de preconceito que desfilam. Ainda assim, acho que Dino errou. Quando a liberdade de expressão se choca com direitos constitucionais mais abstratos, como a autoimagem de grupos, é a primeira que deve prevalecer. Há até um argumento aritmético. O único comando constitucional que aparece duas vezes no texto da Carta é justamente aquele que proíbe a censura, que figura no art. 5º, IX e no 220. Não há muita dúvida, portanto, sobre qual princípio o constituinte privilegiou.

Embora eu defenda versões bem robustas da liberdade de expressão, não veria escândalo maior se a Justiça tivesse se limitado a impor o pagamento de uma indenização. Mas Dino foi muito mais longe, pois determinou que as obras tenham sua circulação suspensa, sejam recolhidas e destruídas, inclusive exemplares de bibliotecas públicas. É aí que mora o perigo.

A história da humanidade é um catálogo de preconceitos, do qual não se excluem algumas das melhores criações literárias e filosóficas. Eurípides e Schopenhauer têm passagens francamente misóginas; Aristóteles defende a escravidão; Shakespeare e o doutor da Igreja João Crisóstomo não escondem seu antissemitismo. A Bíblia manda apedrejar homossexuais masculinos.

Não resisto a uma "reductio ad absurdum". Se casos semelhantes envolvendo obras desses autores chegarem à mesa de Dino, ele mandará picotar Aristóteles e Shakespeare? E as Escrituras?

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Os autores condenam aquilo que eles acham que a gente gosta,eu tenho pavor de sexo anal e conheço vários gays que detestam também,além de doloroso demais,também é porcoso demais - Tem héteros,homens e mulheres,que praticam,eu nunca entendi,eu só entendo de sofrimento,fui.