Valor Econômico
A mão pesada da autocracia trumpista não vai
melhorar a academia, provavelmente irá prejudicar o país em seu desenvolvimento
O presidente Donald Trump escolheu vários
inimigos em seu segundo mandato, e seu objetivo é neutralizá-los ao máximo para
ter um poder autocrático. A oposição democrata, estados da federação, juízes
independentes, a mídia, a China e os países que não aceitam ser satélites dos
EUA, em suma, a lista é grande dos que devem ser perseguidos e enfraquecidos.
Um dos escolhidos são as universidades, cujas ideias não são controladas pelos
algoritmos das redes sociais amigas do trumpismo. Atacá-las faz sentido para quem
quer perpetuar-se no poder, mas tem um efeito colateral: debilitar o poder real
e simbólico dos Estados Unidos.
“Fazer a América grande de novo” é o slogan básico do trumpismo. Aparentemente, ela contém um projeto de longo prazo para os Estados Unidos: reindustrializar o país, aumentar a renda da classe média, ter novamente uma ordem internacional dominada pelos EUA e garantir que os “valores culturais mais profundos” vençam a guerra contra as ideias liberais que estariam pervertendo a nação. Trump seria o escolhido, no sentido religioso da palavra, para levar adiante esse plano, o que só seria possível com uma estratégia que lhe garanta muito poder no curto prazo - quem sabe até garantindo a possibilidade de um terceiro mandato.
O longo prazo glorioso, portanto, depende de
um presidente muito forte, com um poder maior do que qualquer outro na história
dos EUA. E isso só pode ser obtido eliminando todo e qualquer freio à revolução
trumpista. No plano interno, os Poderes da República, o federalismo e a mídia
são os alvos mais evidentes, mas não são os únicos. A universidade tem um lugar
central aqui pela sua simbologia e pela sua capacidade de influenciar os atores
sociais por meio de suas ideias. A liberdade de pensamento é um risco para
Trump, que já tem ao seu lado as big techs e suas redes sociais como
instrumentos para conquistar corações e mentes dos eleitores.
O ataque às universidades obedece a uma
estratégia mais ampla do trumpismo. No curto prazo, com maior ênfase no caso de
Harvard, combate-se um modo de vida e sua caricatura. As instituições
universitárias de elite produzem saber independente e ciência, duas coisas que
incomodam quem quer controlar o debate público. Mas também são vistas por uma
parcela grande da população como esnobes e defensoras do ideário woke, um dos
principais espantalhos eleitorais em 2024.
Inegavelmente há exageros em determinadas
posições tachadas de identitárias, porém, vale lembrar que quem as combate pelo
lado conservador não quer maior protagonismo feminino e/ou negro na sociedade
americana. Em outras palavras, enquanto o trumpismo critica o elitismo liberal
no seu modo woke, ele professa um modelo elitista mais perverso, defensor de
desigualdades históricas dos EUA.
De todo modo, bater em Harvard e instituições
similares é uma forma de dialogar com um eleitorado hoje descrente no sonho
americano, que teria sido sequestrado por grupos vinculados à questão da
diversidade - visão obviamente distorcida da realidade atual. O exagero é aqui
a tônica do debate, gerando uma polarização que por ora só favorece Trump,
mestre na lógica maniqueísta de fazer política. Mas a luta contra as
universidades serve a um projeto maior do que destronar a visão woke. Isso é só
a cereja do bolo.
Por trás da luta eleitoral imediata, há uma
visão que deseja controlar a própria produção do conhecimento e sua influência
sobre a vida da população americana. A tabelinha de Trump com as big techs é um
projeto de longo prazo de parte da elite americana, para a qual as
universidades e sua independência são um empecilho. O que importa como ciência
para o trumpismo é a capacidade de produzir conhecimento tecnológico que
permita controlar a sociedade - hoje por meio das redes sociais, quem sabe
amanhã por meio da inteligência artificial. Todo o resto, inclusive saberes
médicos essenciais, como a vacina contra o sarampo, são criticados pela via de
um negacionismo que, no fundo, teme perder a direção do processo histórico da
sociedade americana.
A equação trumpista contra as universidades
resume-se na combinação de um discurso eleitoreiro de curto prazo - a América
profunda contra o modo woke - com uma visão de longo prazo que pretende
controlar o conhecimento pela via exclusiva do mercado dominado pelas big
techs, e por conta disso teme o saber autônomo da ciência e das humanidades
presente nas instituições universitárias. A lógica do primeiro ponto é
oportunista, ao passo que a opção pelo domínio tecnológico concentrado em
poucos, e amigos do rei, é o maior perigo da luta de Trump contra as
universidades.
A sociedade americana e suas elites que ainda
não foram cooptadas por Trump precisam perceber o risco que há nessa caça às
bruxas. O desmantelamento das principais universidades levaria a quatro efeitos
extremamente negativos para o futuro dos EUA: o debilitamento de uma mola
central para o dinamismo econômico, o enfraquecimento do soft power americano
no plano internacional, a redução do poder do ambiente universitário em formar
lideranças e, por fim, a perda de um espaço central para construir os ideais democráticos
e de liberdade.
O avanço econômico americano depende, desde o
final do século XIX, do saber criado e difundido nos ambientes universitários.
O progresso tecnológico ganha em velocidade, precisão e expansão quando baseado
na produção e debate científico. A academia não só descobre novas tecnologias;
ela discute seus limites e possibilidades de uso. O conhecimento universitário
também é responsável por formar gestores públicos e privados que são essenciais
na melhoria da produtividade e efetividade das empresas e serviços públicos.
O acréscimo de capital humano universitário é
uma peça-chave na história de sucesso do desenvolvimento americano. Se as
universidades perderem seus principais cientistas, os mais jovens não terão
futuramente a mesma produtividade dos dias de hoje, além de uma possível fuga
de cérebros ser capaz de reduzir a assimetria econômica dos EUA com outros
países. O projeto megalomaníaco de poder de Trump, se der certo, gerará atraso
econômico e social no longo prazo.
Um segundo efeito bastante negativo é a perda
de um dos maiores instrumentos de soft power dos EUA. As universidades
americanas formam elites técnicas, econômicas e políticas para diversos países
do mundo, e tais lideranças levam sua visão positiva sobre os Estados Unidos
para suas sociedades. Além disso, parcerias com instituições universitárias
americanas, quase sempre disputadas, resultam em avanços científicos em vários
cantos do mundo.
Quando estive como pesquisador visitante no
MIT, perguntei a um professor americano o que fazia das universidades do EUA as
melhores do planeta. E ele me respondeu: “Várias coisas explicam a força das
instituições universitárias dos Estados Unidos, mas com certeza uma das
principais razões é que os maiores talentos do mundo vêm trabalhar conosco”. Ao
dificultar a permanência de estrangeiros nas universidades de elite, perde-se
não somente um forte instrumento de soft power no plano internacional. Enfraquece-se
também a própria capacidade de produzir a ciência mais avançada.
As universidades americanas têm sido
fundamentais como lócus central para a formação das elites do país. Lideranças
que aprenderam no ambiente universitário a empreender economicamente, a dominar
as principais ferramentas científicas, a desenvolver a criatividade em prol das
artes e da comunicação que conquistaram o mundo todo. Figuras importantes do
Estado americano tiveram em instituições universitárias de ponta um meio
privilegiado para aprender como construir um país poderoso na ordem
internacional.
Ao se ignorar ou vilipendiar o saber
acadêmico, de onde o trumpismo imagina que as elites do futuro serão
produzidas? O enfraquecimento das universidades como instância central na
formação de lideranças condena os EUA a serem cada vez mais dominados por líderes
populistas, geralmente ignorantes sobre o mundo e acerca das receitas para o
sucesso dos Estados Unidos no século XXI.
Nos Estados Unidos, a democracia e a
liberdade vão muito além das universidades. Mas elas têm sido um lugar
estratégico para semear o modelo democrático e a defesa dos direitos humanos. É
verdade que nem sempre a academia é tão plural como deveria ser. Muitos
reclamam hoje dos exageros que o chamado identitarismo produziu em algumas
instituições de ponta dos EUA, mas isso também ocorreu em 1968 na Europa,
quando jovens esquerdistas tentaram calar seus professores liberais ou de
esquerda.
Mesmo quando insuficiente, não há lugar mais
pluralista para a construção do saber e para a defesa dos ideais democráticos
do que a universidade livre. A mão pesada da autocracia trumpista não vai
melhorar a academia, provavelmente irá prejudicar o país em seu desenvolvimento
e enfraquecerá a produção do conhecimento em todo o mundo, dada a relevância
das instituições americanas.
Do mesmo modo que quando destruímos florestas
estamos prejudicando o futuro de nossos filhos e netos, a batalha de Trump
contra a universidade é um passo grande rumo a uma sociedade distópica. Se esse
projeto trumpista for adiante, a grandeza dos Estados Unidos, tão prometida
pelo presidente americano, ficará apenas nos livros de história.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Nenhum comentário:
Postar um comentário