sexta-feira, 6 de junho de 2025

Batalha contra universidades enfraquece os EUA - Fernando Abrucio*

Valor Econômico

A mão pesada da autocracia trumpista não vai melhorar a academia, provavelmente irá prejudicar o país em seu desenvolvimento

O presidente Donald Trump escolheu vários inimigos em seu segundo mandato, e seu objetivo é neutralizá-los ao máximo para ter um poder autocrático. A oposição democrata, estados da federação, juízes independentes, a mídia, a China e os países que não aceitam ser satélites dos EUA, em suma, a lista é grande dos que devem ser perseguidos e enfraquecidos. Um dos escolhidos são as universidades, cujas ideias não são controladas pelos algoritmos das redes sociais amigas do trumpismo. Atacá-las faz sentido para quem quer perpetuar-se no poder, mas tem um efeito colateral: debilitar o poder real e simbólico dos Estados Unidos.

“Fazer a América grande de novo” é o slogan básico do trumpismo. Aparentemente, ela contém um projeto de longo prazo para os Estados Unidos: reindustrializar o país, aumentar a renda da classe média, ter novamente uma ordem internacional dominada pelos EUA e garantir que os “valores culturais mais profundos” vençam a guerra contra as ideias liberais que estariam pervertendo a nação. Trump seria o escolhido, no sentido religioso da palavra, para levar adiante esse plano, o que só seria possível com uma estratégia que lhe garanta muito poder no curto prazo - quem sabe até garantindo a possibilidade de um terceiro mandato.

O longo prazo glorioso, portanto, depende de um presidente muito forte, com um poder maior do que qualquer outro na história dos EUA. E isso só pode ser obtido eliminando todo e qualquer freio à revolução trumpista. No plano interno, os Poderes da República, o federalismo e a mídia são os alvos mais evidentes, mas não são os únicos. A universidade tem um lugar central aqui pela sua simbologia e pela sua capacidade de influenciar os atores sociais por meio de suas ideias. A liberdade de pensamento é um risco para Trump, que já tem ao seu lado as big techs e suas redes sociais como instrumentos para conquistar corações e mentes dos eleitores.

O ataque às universidades obedece a uma estratégia mais ampla do trumpismo. No curto prazo, com maior ênfase no caso de Harvard, combate-se um modo de vida e sua caricatura. As instituições universitárias de elite produzem saber independente e ciência, duas coisas que incomodam quem quer controlar o debate público. Mas também são vistas por uma parcela grande da população como esnobes e defensoras do ideário woke, um dos principais espantalhos eleitorais em 2024.

Inegavelmente há exageros em determinadas posições tachadas de identitárias, porém, vale lembrar que quem as combate pelo lado conservador não quer maior protagonismo feminino e/ou negro na sociedade americana. Em outras palavras, enquanto o trumpismo critica o elitismo liberal no seu modo woke, ele professa um modelo elitista mais perverso, defensor de desigualdades históricas dos EUA.

De todo modo, bater em Harvard e instituições similares é uma forma de dialogar com um eleitorado hoje descrente no sonho americano, que teria sido sequestrado por grupos vinculados à questão da diversidade - visão obviamente distorcida da realidade atual. O exagero é aqui a tônica do debate, gerando uma polarização que por ora só favorece Trump, mestre na lógica maniqueísta de fazer política. Mas a luta contra as universidades serve a um projeto maior do que destronar a visão woke. Isso é só a cereja do bolo.

Por trás da luta eleitoral imediata, há uma visão que deseja controlar a própria produção do conhecimento e sua influência sobre a vida da população americana. A tabelinha de Trump com as big techs é um projeto de longo prazo de parte da elite americana, para a qual as universidades e sua independência são um empecilho. O que importa como ciência para o trumpismo é a capacidade de produzir conhecimento tecnológico que permita controlar a sociedade - hoje por meio das redes sociais, quem sabe amanhã por meio da inteligência artificial. Todo o resto, inclusive saberes médicos essenciais, como a vacina contra o sarampo, são criticados pela via de um negacionismo que, no fundo, teme perder a direção do processo histórico da sociedade americana.

A equação trumpista contra as universidades resume-se na combinação de um discurso eleitoreiro de curto prazo - a América profunda contra o modo woke - com uma visão de longo prazo que pretende controlar o conhecimento pela via exclusiva do mercado dominado pelas big techs, e por conta disso teme o saber autônomo da ciência e das humanidades presente nas instituições universitárias. A lógica do primeiro ponto é oportunista, ao passo que a opção pelo domínio tecnológico concentrado em poucos, e amigos do rei, é o maior perigo da luta de Trump contra as universidades.

A sociedade americana e suas elites que ainda não foram cooptadas por Trump precisam perceber o risco que há nessa caça às bruxas. O desmantelamento das principais universidades levaria a quatro efeitos extremamente negativos para o futuro dos EUA: o debilitamento de uma mola central para o dinamismo econômico, o enfraquecimento do soft power americano no plano internacional, a redução do poder do ambiente universitário em formar lideranças e, por fim, a perda de um espaço central para construir os ideais democráticos e de liberdade.

O avanço econômico americano depende, desde o final do século XIX, do saber criado e difundido nos ambientes universitários. O progresso tecnológico ganha em velocidade, precisão e expansão quando baseado na produção e debate científico. A academia não só descobre novas tecnologias; ela discute seus limites e possibilidades de uso. O conhecimento universitário também é responsável por formar gestores públicos e privados que são essenciais na melhoria da produtividade e efetividade das empresas e serviços públicos.

O acréscimo de capital humano universitário é uma peça-chave na história de sucesso do desenvolvimento americano. Se as universidades perderem seus principais cientistas, os mais jovens não terão futuramente a mesma produtividade dos dias de hoje, além de uma possível fuga de cérebros ser capaz de reduzir a assimetria econômica dos EUA com outros países. O projeto megalomaníaco de poder de Trump, se der certo, gerará atraso econômico e social no longo prazo.

Um segundo efeito bastante negativo é a perda de um dos maiores instrumentos de soft power dos EUA. As universidades americanas formam elites técnicas, econômicas e políticas para diversos países do mundo, e tais lideranças levam sua visão positiva sobre os Estados Unidos para suas sociedades. Além disso, parcerias com instituições universitárias americanas, quase sempre disputadas, resultam em avanços científicos em vários cantos do mundo.

Quando estive como pesquisador visitante no MIT, perguntei a um professor americano o que fazia das universidades do EUA as melhores do planeta. E ele me respondeu: “Várias coisas explicam a força das instituições universitárias dos Estados Unidos, mas com certeza uma das principais razões é que os maiores talentos do mundo vêm trabalhar conosco”. Ao dificultar a permanência de estrangeiros nas universidades de elite, perde-se não somente um forte instrumento de soft power no plano internacional. Enfraquece-se também a própria capacidade de produzir a ciência mais avançada.

As universidades americanas têm sido fundamentais como lócus central para a formação das elites do país. Lideranças que aprenderam no ambiente universitário a empreender economicamente, a dominar as principais ferramentas científicas, a desenvolver a criatividade em prol das artes e da comunicação que conquistaram o mundo todo. Figuras importantes do Estado americano tiveram em instituições universitárias de ponta um meio privilegiado para aprender como construir um país poderoso na ordem internacional.

Ao se ignorar ou vilipendiar o saber acadêmico, de onde o trumpismo imagina que as elites do futuro serão produzidas? O enfraquecimento das universidades como instância central na formação de lideranças condena os EUA a serem cada vez mais dominados por líderes populistas, geralmente ignorantes sobre o mundo e acerca das receitas para o sucesso dos Estados Unidos no século XXI.

Nos Estados Unidos, a democracia e a liberdade vão muito além das universidades. Mas elas têm sido um lugar estratégico para semear o modelo democrático e a defesa dos direitos humanos. É verdade que nem sempre a academia é tão plural como deveria ser. Muitos reclamam hoje dos exageros que o chamado identitarismo produziu em algumas instituições de ponta dos EUA, mas isso também ocorreu em 1968 na Europa, quando jovens esquerdistas tentaram calar seus professores liberais ou de esquerda.

Mesmo quando insuficiente, não há lugar mais pluralista para a construção do saber e para a defesa dos ideais democráticos do que a universidade livre. A mão pesada da autocracia trumpista não vai melhorar a academia, provavelmente irá prejudicar o país em seu desenvolvimento e enfraquecerá a produção do conhecimento em todo o mundo, dada a relevância das instituições americanas.

Do mesmo modo que quando destruímos florestas estamos prejudicando o futuro de nossos filhos e netos, a batalha de Trump contra a universidade é um passo grande rumo a uma sociedade distópica. Se esse projeto trumpista for adiante, a grandeza dos Estados Unidos, tão prometida pelo presidente americano, ficará apenas nos livros de história.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

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