DEU NO VALOR ECONÔMICO
Será que algum leitor deste artigo recebe regularmente o Bolsa Família? Eu diria, com relativa certeza, que dificilmente. Quem lê jornal no Brasil, ao menos jornais com o perfil do Valor, são pessoas de grau superior, os assim chamados formadores de opinião, pessoas de renda elevada que fazem parte, em maior ou menor grau, do debate político e econômico brasileiro. Trata-se de um perfil social distante do perfil médio de quem recebe o benefício social do governo federal.
Proponho que nós, leitores deste jornal, pensemos no Bolsa Família sob a ótica de quem o recebe.
Será que algum leitor deste artigo recebe regularmente o Bolsa Família? Eu diria, com relativa certeza, que dificilmente. Quem lê jornal no Brasil, ao menos jornais com o perfil do Valor, são pessoas de grau superior, os assim chamados formadores de opinião, pessoas de renda elevada que fazem parte, em maior ou menor grau, do debate político e econômico brasileiro. Trata-se de um perfil social distante do perfil médio de quem recebe o benefício social do governo federal.
Proponho que nós, leitores deste jornal, pensemos no Bolsa Família sob a ótica de quem o recebe.
A pessoa que recebe esse benefício social reside, na maioria dos casos, em regiões com pouco ou nenhum dinamismo econômico. Esqueçamos por ora a prosperidade da cidade de São Paulo com a sua Mesopotâmia, as residências, os escritórios e os restaurantes que ficam entre os rios Pinheiros e Tietê. O ponto de vista dessa cidade, e dessa região específica de São Paulo, não serve para entender o significado do Bolsa Família para quem o recebe.
Alguns críticos de São Paulo, muitas vezes cariocas, dizem que se trata de uma cidade cheia de restaurantes cercados por escritórios. O interior pobre do Brasil, onde predomina o Bolsa Família, caracteriza-se por um grande aglomerado de casebres cercados de informalidade por todos os lados. É uma grande ilha, ou continente ilhado, de miséria.
Resultado: quem reside em São Paulo, na zona sul do Rio ou na Savassi de Belo Horizonte aprende desde criança que se tiver uma boa educação e trabalhar muito melhora de vida. Isso aconteceu provavelmente com todos os que leram e vão ler este artigo. Isso aconteceu e acontece comigo. Quanto mais trabalho, mais chances tenho de conseguir mais clientes, de vender mais e, consequentemente, de melhorar de vida. O ambiente de São Paulo favorece sobremaneira essa trajetória. Há empresas, negócios, dinamismo. Individualmente, há carreira, há profissão. Muitos dos que se formam nas faculdades cariocas e paulistas saem pensando em como construir uma carreira. Isso é possível no chamado Sul Maravilha.
É possível também no interior do Nordeste? Não, não é. Quem mora no interior de qualquer Estado nordestino e também tem escolaridade baixa, que é pai de família, não tem carreira.
Não tem, nunca teve, nem nunca terá. Para esse chefe de família o trabalho não compensa.
Alguns críticos de São Paulo, muitas vezes cariocas, dizem que se trata de uma cidade cheia de restaurantes cercados por escritórios. O interior pobre do Brasil, onde predomina o Bolsa Família, caracteriza-se por um grande aglomerado de casebres cercados de informalidade por todos os lados. É uma grande ilha, ou continente ilhado, de miséria.
Resultado: quem reside em São Paulo, na zona sul do Rio ou na Savassi de Belo Horizonte aprende desde criança que se tiver uma boa educação e trabalhar muito melhora de vida. Isso aconteceu provavelmente com todos os que leram e vão ler este artigo. Isso aconteceu e acontece comigo. Quanto mais trabalho, mais chances tenho de conseguir mais clientes, de vender mais e, consequentemente, de melhorar de vida. O ambiente de São Paulo favorece sobremaneira essa trajetória. Há empresas, negócios, dinamismo. Individualmente, há carreira, há profissão. Muitos dos que se formam nas faculdades cariocas e paulistas saem pensando em como construir uma carreira. Isso é possível no chamado Sul Maravilha.
É possível também no interior do Nordeste? Não, não é. Quem mora no interior de qualquer Estado nordestino e também tem escolaridade baixa, que é pai de família, não tem carreira.
Não tem, nunca teve, nem nunca terá. Para esse chefe de família o trabalho não compensa.
Trabalhar mais não levará necessariamente a melhorar de vida.
Vamos nos colocar no lugar dessa pessoa. Um homem, de uns 38 anos, que não completou o segundo grau, casado e pai de dois ou três filhos, morador de uma cidade vizinha a Petrolina, no interior de Pernambuco. Esse indivíduo não tem poder de barganha no mercado de trabalho.
Vamos nos colocar no lugar dessa pessoa. Um homem, de uns 38 anos, que não completou o segundo grau, casado e pai de dois ou três filhos, morador de uma cidade vizinha a Petrolina, no interior de Pernambuco. Esse indivíduo não tem poder de barganha no mercado de trabalho.
Naquela região, como ele, existem milhares. Assim, o empregador muito provavelmente não lhe dará um trabalho de carteira assinada. Caso não se torne um migrante, ele vai trabalhar em algum roçado, vai construir ou manter a cerca de alguma propriedade, poderá tornar-se um vendedor de porta em porta de vassouras e rodos e, se tiver muito sucesso na vida, eventualmente, poderá conseguir um emprego urbano como "auxiliar administrativo", esta profissão pouco definida e muito mal remunerada pela qual qualquer brasileiro pouco ou nada qualificado poderá almejar.
Essa criatura imaginária é muito real. Ela não concebe a melhoria de vida por meio do trabalho. Isso é fato, não é uma simples percepção. Isso é real. É aqui que entra o Bolsa Família. Esse benefício social, recebido mensal e regularmente por esse chefe de família, se torna a única oportunidade de melhorar de vida no curto prazo.
Quando se diz que alguém "realmente precisa do Bolsa Família", está-se dizendo que sem o benefício social essa pessoa jamais melhoraria de vida. É verdade. O recebimento do benefício mudou a vida dela e de seus familiares. Houve um imediato aumento na renda corrente e, como se trata de um contrato de longo prazo, essa família passou a poder comprar coisas no crediário. Praticamente 50% dos que recebem o Bolsa estão atualmente comprando alguma coisa em prestações. O mais interessante é que o programa atinge cerca de 30% das famílias brasileiras e custa para o governo federal a quantia irrisória que corresponde a 0,4%, apenas, de nosso PIB.
O Brasil passou longos anos sem cuidar de sua população, sem educá-la formalmente de maneira apropriada. Apenas durante o governo Fernando Henrique, ou seja, depois de 1994, conseguimos universalizar o acesso das crianças à educação básica. Ainda não conseguimos universalizar o acesso dos adolescentes ao ensino médio. Além disso, a evasão e a repetência são um fenômeno avassalador nos dois níveis de ensino. Não investimos há 30 ou 40 anos em educação, temos que gastar agora um pouquinho (0,4% do PIB, como mencionado anteriormente) com política social para "compensar" o não investimento.
Há uma crítica de caráter moral ao Bolsa Família: ele cria acomodação. Ledo engano. O beneficiário do programa já era acomodado. A ambição já veio morta, de berço. Em áreas sem dinamismo econômico, como afirmei, o trabalho não compensa, a ambição não existe. O Bolsa não gera nem vai gerar ambição. Os pais nunca terão uma boa oportunidade no mercado de trabalho, é uma geração perdida em termos profissionais. Se alguém tiver oportunidades de empregos melhores, serão os filhos. Daí a necessidade da obrigatoriedade da matrícula escolar. O Bolsa melhorou o bem-estar geral da família e criou um incentivo a mais, para muitas famílias o único incentivo, para manter as crianças na escola. Salva-se a geração dos mais jovens.
A crítica moral a essa política social não encontra apoio na maioria da população brasileira.
Nada menos do que 77% da população concorda com a seguinte afirmação: "Muita gente que recebe o Bolsa Família continua trabalhando, por isso ele tem que continuar". Essa proporção é menor entre as pessoas que têm o grau superior completo e maior entre as pessoas de escolaridade mais baixa. Quem tem o grau superior completo, ao contrário das pessoas de escolarização baixa, está muito distante da situação financeira e social de quem recebe o Bolsa. Assim, é menos compreensivo em face dos benefícios do programa social. A maioria de nossa população tem a renda e a escolaridade baixas. Sendo assim, o apoio social ao Bolsa Família é muito grande.
Se apenas 30% da população recebe o Bolsa, nada menos do que 60% afirmam ser totalmente a favor do programa. Quando somamos esse número aos 23% que dizem ser a favor, obtemos 83% da população adulta brasileira apoiando o programa social criado no governo Fernando Henrique Cardoso. Só 16% se dizem contrários ao programa. Destes 5% são totalmente contra e 11%, um pouco contra. Quem é mais contra? Quem tem diploma de grau superior. Praticamente um quarto de quem se formou em uma faculdade é contra o bolsa. Essa proporção é de somente 12% para as pessoas do mais baixo nível de escolaridade formal, o primário completo.
Qual é a consequência política dessa informação? Que o Bolsa Família está para a área social assim como a inflação está para a área econômica. A maioria os quer, aceita, valoriza e considera ambos um ganho já estabelecido e com poucas chances de haver retrocesso.
O presidente Lula escreveu e divulgou em 2002 a famosa "Carta aos Brasileiros", eufemismo para uma carta aos banqueiros e investidores internacionais. Nela, Lula prometeu e cumpriu manter os quatro elementos-chave da política econômica de FHC: câmbio flutuante, superávit primário, metas de inflação e responsabilidade fiscal. Em 13 de agosto de 2002, Lula declarou na "Folha de S.Paulo": "Eu me dei conta de que o PT que precisava construir era maior do que o PT de macacão que eu sonhava em construir". Tão grande que trouxe recentemente Fernando Collor como um de seus importantes aliados. Lula foi e é extremamente pragmático.
A oposição, PSDB, DEM e PPS, precisa cometer o "pecado" do pragmatismo para enfrentar Lula. Nesse caso, o pecado é quebrar o omelete de apoiar sem tergiversação o Bolsa Família.
Há várias maneiras de demonstrar que se é a favor de alguma coisa. Uma delas é simplesmente afirmar: sou a favor do Bolsa Família, aliás, ele foi criado durante um governo do PSDB. Outra maneira é afirmar: vamos duplicar o valor do Bolsa Família. Esse é um apoio contundente, um apoio que não dá espaço para desculpas evasivas de quem apoia ou para ataques infames do adversário.
A propósito, dobrar o Bolsa significa sair de 4,0 para 0,8% do PIB nesse gasto. Apenas um pouco a mais do que os 0,6% colocados no benefício da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), mais um programa de proteção social criado no período tucano. Se o programa é bom para quem o recebe, se foi criado (com inspiração de Milton Friedman) por um governo do PSDB e se trará dividendos eleitorais importantes, em particular para quem se caracteriza por gestões eficientes, por que não assumir o compromisso de duplicá-lo? Há uma única razão para não fazê-lo: uma visão de mundo, uma ideologia que rechace o bolsa. Uma ideologia que, nesse caso, é oposta à ideologia do pragmatismo.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).
Essa criatura imaginária é muito real. Ela não concebe a melhoria de vida por meio do trabalho. Isso é fato, não é uma simples percepção. Isso é real. É aqui que entra o Bolsa Família. Esse benefício social, recebido mensal e regularmente por esse chefe de família, se torna a única oportunidade de melhorar de vida no curto prazo.
Quando se diz que alguém "realmente precisa do Bolsa Família", está-se dizendo que sem o benefício social essa pessoa jamais melhoraria de vida. É verdade. O recebimento do benefício mudou a vida dela e de seus familiares. Houve um imediato aumento na renda corrente e, como se trata de um contrato de longo prazo, essa família passou a poder comprar coisas no crediário. Praticamente 50% dos que recebem o Bolsa estão atualmente comprando alguma coisa em prestações. O mais interessante é que o programa atinge cerca de 30% das famílias brasileiras e custa para o governo federal a quantia irrisória que corresponde a 0,4%, apenas, de nosso PIB.
O Brasil passou longos anos sem cuidar de sua população, sem educá-la formalmente de maneira apropriada. Apenas durante o governo Fernando Henrique, ou seja, depois de 1994, conseguimos universalizar o acesso das crianças à educação básica. Ainda não conseguimos universalizar o acesso dos adolescentes ao ensino médio. Além disso, a evasão e a repetência são um fenômeno avassalador nos dois níveis de ensino. Não investimos há 30 ou 40 anos em educação, temos que gastar agora um pouquinho (0,4% do PIB, como mencionado anteriormente) com política social para "compensar" o não investimento.
Há uma crítica de caráter moral ao Bolsa Família: ele cria acomodação. Ledo engano. O beneficiário do programa já era acomodado. A ambição já veio morta, de berço. Em áreas sem dinamismo econômico, como afirmei, o trabalho não compensa, a ambição não existe. O Bolsa não gera nem vai gerar ambição. Os pais nunca terão uma boa oportunidade no mercado de trabalho, é uma geração perdida em termos profissionais. Se alguém tiver oportunidades de empregos melhores, serão os filhos. Daí a necessidade da obrigatoriedade da matrícula escolar. O Bolsa melhorou o bem-estar geral da família e criou um incentivo a mais, para muitas famílias o único incentivo, para manter as crianças na escola. Salva-se a geração dos mais jovens.
A crítica moral a essa política social não encontra apoio na maioria da população brasileira.
Nada menos do que 77% da população concorda com a seguinte afirmação: "Muita gente que recebe o Bolsa Família continua trabalhando, por isso ele tem que continuar". Essa proporção é menor entre as pessoas que têm o grau superior completo e maior entre as pessoas de escolaridade mais baixa. Quem tem o grau superior completo, ao contrário das pessoas de escolarização baixa, está muito distante da situação financeira e social de quem recebe o Bolsa. Assim, é menos compreensivo em face dos benefícios do programa social. A maioria de nossa população tem a renda e a escolaridade baixas. Sendo assim, o apoio social ao Bolsa Família é muito grande.
Se apenas 30% da população recebe o Bolsa, nada menos do que 60% afirmam ser totalmente a favor do programa. Quando somamos esse número aos 23% que dizem ser a favor, obtemos 83% da população adulta brasileira apoiando o programa social criado no governo Fernando Henrique Cardoso. Só 16% se dizem contrários ao programa. Destes 5% são totalmente contra e 11%, um pouco contra. Quem é mais contra? Quem tem diploma de grau superior. Praticamente um quarto de quem se formou em uma faculdade é contra o bolsa. Essa proporção é de somente 12% para as pessoas do mais baixo nível de escolaridade formal, o primário completo.
Qual é a consequência política dessa informação? Que o Bolsa Família está para a área social assim como a inflação está para a área econômica. A maioria os quer, aceita, valoriza e considera ambos um ganho já estabelecido e com poucas chances de haver retrocesso.
O presidente Lula escreveu e divulgou em 2002 a famosa "Carta aos Brasileiros", eufemismo para uma carta aos banqueiros e investidores internacionais. Nela, Lula prometeu e cumpriu manter os quatro elementos-chave da política econômica de FHC: câmbio flutuante, superávit primário, metas de inflação e responsabilidade fiscal. Em 13 de agosto de 2002, Lula declarou na "Folha de S.Paulo": "Eu me dei conta de que o PT que precisava construir era maior do que o PT de macacão que eu sonhava em construir". Tão grande que trouxe recentemente Fernando Collor como um de seus importantes aliados. Lula foi e é extremamente pragmático.
A oposição, PSDB, DEM e PPS, precisa cometer o "pecado" do pragmatismo para enfrentar Lula. Nesse caso, o pecado é quebrar o omelete de apoiar sem tergiversação o Bolsa Família.
Há várias maneiras de demonstrar que se é a favor de alguma coisa. Uma delas é simplesmente afirmar: sou a favor do Bolsa Família, aliás, ele foi criado durante um governo do PSDB. Outra maneira é afirmar: vamos duplicar o valor do Bolsa Família. Esse é um apoio contundente, um apoio que não dá espaço para desculpas evasivas de quem apoia ou para ataques infames do adversário.
A propósito, dobrar o Bolsa significa sair de 4,0 para 0,8% do PIB nesse gasto. Apenas um pouco a mais do que os 0,6% colocados no benefício da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), mais um programa de proteção social criado no período tucano. Se o programa é bom para quem o recebe, se foi criado (com inspiração de Milton Friedman) por um governo do PSDB e se trará dividendos eleitorais importantes, em particular para quem se caracteriza por gestões eficientes, por que não assumir o compromisso de duplicá-lo? Há uma única razão para não fazê-lo: uma visão de mundo, uma ideologia que rechace o bolsa. Uma ideologia que, nesse caso, é oposta à ideologia do pragmatismo.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).
Um comentário:
Leitor semanal do prof. da USP, concordo inteiramente com seu approach e insight.
Os "Bolsistas de Fernando Henrique" são fundamentais para a estabilidade democrática do Brasil -não somente do Nordeste mas de todo o País.
O Bolsa-Família de FHC permite a sobrevivência no curto prazo - essencial para mudanças economicas e políticas à longo prazo.
Assim, políticas públicas podem ser elaboradas para inclusão social (e todas outras) das gerações sucessivas de 30 milhões de brasileiros famintos.
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