Se
o líder pensa com os intestinos e não domina ódios pessoais, perde acatamento
político
Das
cenas grotescas protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro, a que foi
exibida no último dia 27 de janeiro é das mais repulsivas. Cercado por tietes,
ele exibiu todo o ódio à imprensa. A causa do destempero encontra-se na
denúncia sobre os estranhos gastos do Executivo federal com alimentos. Um
estadista responderia com números e documentos. Mas, ao proferir, sorrindo,
vocábulos pornográficos, o governante recebeu ovações de arruaceiros e
chaleiras. Tal vitupério exige processo judicial por indecente uso do cargo.
Frases que no pior bordel são evitadas, nos lábios de um presidente causam
asco.
O “mito” não entenderá a citação abaixo, pois sua força cognitiva é pequena. Mas entre ministros, políticos que a ele se aliam e antigos apoiadores talvez exista algum saber. A eles me dirijo. Ao discutir a governabilidade, diz Spinoza: “A república não pode fazer com que os homens (...) respeitem o que gera riso ou náusea. (...) Para garantir o poder é preciso guardar as causas do medo e do respeito, caso oposto não há mais um Estado. É impossível para os que operam o mando político (...) bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por eles mesmos estabelecidas, pois assim eles perdem a majestade e mudam o medo em indignação e o estado civil em estado de guerra” (Tratado Político). Tais enunciados vêm de Maquiavel, pensador das práticas que permitem manter o poderio civil.
Repito:
o presidente nada compreende de semelhantes teses. Mas quem negou sua utilidade
perdeu cargos, para não mencionar a cabeça. Assim foi com Carlos I da
Inglaterra e Luís XVI na França. Sempre chega a vez de quem imagina a si mesmo
como impune e infenso às leis.
O
decoro na fala e na postura corporal integra toda autoridade política,
jurídica, religiosa, militar. Menciono outro escrito que certamente não será
compreendido pelo sr. Jair Bolsonaro e seus marombeiros. Trata-se de Hannah
Arendt: “Se for preciso verdadeiramente definir a autoridade, deve-se fazê-lo
opondo-a ao mesmo tempo ao constrangimento pela força e à persuasão por
argumentos”. No setor público ou privado cada um reconhece a superior
hierarquia de quem ostenta autoridade. Não é pelo vezo de prender ou censurar,
perseguir ou caluniar aos berros os oponentes que alguém consegue respeito
público.
Dito
de outro modo: se você precisa gritar para que lhe obedeçam, sua autoridade não
existe. Inteligência, decoro, respeito à hierarquia, autoridade: um estadista
pode receber da vida doses desiguais desses elementos. Ele compensa a fraqueza
de um com a força de outro. Mas o dirigente que enxovalha o seu cargo não tem
autoridade, só lhe cabe o título atribuído por Spinoza: palhaço.
Todo clown possui dupla face:
a risível e a trágica. A primeira é exibida a cada novo dia pelo sr. Jair
Bolsonaro. A trágica surge em decisões imprudentes e impudentes durante a
pandemia. Tantas sandices comete o “mito” – e aí vai um alerta aos militares
responsáveis pela força física estatal – que podemos temer: a indignação diante
do descalabro pode “mudar o estado civil em estado de guerra”.
Aliás,
são hábitos do líder a mão armada e o incentivo aos instrumentos da morte que
impulsionam fraturas civis. Junto vem o boicote pérfido a vacinas como a
Coronavac – esperanças de vida – por mesquinhos alvos políticos. A teoria
infame de Carl Schmitt é praticada por ele: a política como forma de gerar o
inimigo. E assim são corroídos os elos que garantem a união interna do Estado.
Recordo
o dito usado por João de Salisbury (Policraticus)
sobre governantes desprovidos de saber. Rex
illiteratus quasi asinus coronatus est (um rei iletrado é
quase um asno coroado). Para governar urge mover conceitos políticos,
militares, filosóficos, jurídicos e outros. A edificação do Estado moderno se
norteia pelo preparo do governante. Erasmo publicou um tratado sobre o tema, Institutio Principis Christiani.
Ele cita Salisbury: “Liberdade real e virtude só podem ser obtidas onde existe
a liberdade de palavra. O bom príncipe do bom Estado deve aceitar pacientemente
as palavras livres, quaisquer que elas sejam”. Os turpilóquios de Bolsonaro
contra a imprensa ameaçam o verbo independente. Erasmo adverte contra os
aduladores. Na educação do príncipe o cavalo ensina a governar, pois não aceita
violência e recusa imperícia ou lisonja. O sáfaro que ignora tais
peculiaridades equinas vai ao chão. Aduladores, como os do espetáculo obsceno
indicado no início deste artigo, lambem botas do poderoso ocasional. Se ele
perde força, as línguas de aluguel procuram outra fonte de poder.
Gabriel
Naudé, autor das Considerações
Políticas Sobre os Golpes de Estado (1640), louva o saber do
governante e recorda o dito de Luís XI: “Quem não sabe dissimular não sabe
governar”. Se o líder pensa com os intestinos, em vez do cérebro, e não domina
ódios pessoais, perde acatamento político.
Os
destemperos de Jair Bolsonaro evidenciam carência de autoridade, decoro, saber.
Ele quer os poderes do Legislativo e do Judiciário. O lugar que lhe cabe, no
entanto, não é no palácio, mas na arena ou picadeiro.
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)
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