Correio Braziliense
Os palácios e os interiores na nossa capital
estão entre o que existe de mais original e valioso na nossa cultura,
principalmente na arquitetura, nas artes plásticas e no design. Existe muito
simbolismo na política
Num determinado dia no início dos anos
1960, o jornalista Antônio Maria, que, por si só, mereceria uma coluna apenas
para contar essa história, foi atacado por capangas de alguém que não gostava
dele por causa de suas colunas. Estavam orientados a pisar seguidamente nas
suas mãos, para que não mais pudesse escrever. Na manhã seguinte, Maria
denunciava a agressão com o humor ferino que encantava seus leitores e
enfurecia os desafetos: “Que bobos! Eles pensam que o jornalista escreve com as
mãos”. A frase foi imortalizada no jornalismo brasileiro e, obviamente, serve
de inspiração para a coluna de hoje. Antônio Maria morreu em 1964.
O vitral Araguaia, de Marianne Peretti, obra de 1977, não foi destruído no domingo pelos vândalos que invadiram o Congresso. A artista plástica Marie Anne Antoinette Hélène Peretti, filha de mãe francesa e pai brasileiro, nasceu em 1927, em Paris, e veio para o Brasil em 1953. Marianne foi a única artista mulher a integrar a equipe de Oscar Niemeyer na construção de Brasília. Morreu em abril do ano passado, no Recife. Entre suas obras mais famosas, estão os vitrais da Catedral de Brasília, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Palácio do Jaburu e do Memorial JK. Suas obras são reconhecidas internacionalmente, em outros projetos de Oscar Niemeyer, como o Edifício Burgo (Turim, Itália) e a Maison de la Culture du Havre (Le Havre, França).
Araguaia foi feito a partir do projeto de
decoração do Salão Verde, que incluiu obras de arte e mobiliário que ajudassem
a delimitar os espaços e valorizar o ambiente. É o espaço mais democrático da
Câmara, porque nele circulam parlamentares e cidadãos comuns, líderes sindicais
e comunitários, lobistas e jornalistas. É uma obra que humaniza o Poder
Legislativo, como as demais que foram destruídas pelos vândalos, num misto de
ignorância, brutalidade e ódio à cultura e à democracia. Não tem nada a ver com
a guerrilha do Araguaia.
O vandalismo foi uma burrice política
também, porque invasão e depredação do Congresso transformou o mais importante
aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro na Praça dos Três Poderes, o presidente
da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), num adversário da extrema-direita bolsonarista.
Ontem, a Câmara e o Senado referendaram a intervenção federal na segurança
pública do DF.
Fortalecido
Jerzy (Jorge) Zalszupin nasceu em Varsóvia,
na Polônia, em 1º de junho de 1922, em uma família judia. Em 1939, quando
começou a 2ª Guerra Mundial, diante do avanço nazista, sua família atravessou a
fronteira da Polônia com a Romênia e sobreviveu ao Holocausto em Bucareste,
como não judeus. Jorge estudou arquitetura, quando conheceu a obra de Oscar
Niemeyer, e imigrou para o Brasil em 1949, para trabalhar com o arquiteto
Luciano Korngold, até abrir o próprio escritório de design de móveis.
Nos anos 1960, concebeu e produziu móveis
para gabinetes e palácios na construção de Brasília. Entre suas obras mais
conhecidas, estão as poltronas utilizadas pelos ministros do Supremo Tribunal
Federal, destruídas pelos vândalos bolsonaristas. “Projetei o espaldar bem alto
para transmitir sobriedade aos juízes que ali sentassem”, disse, ao explicar o
conceito da cadeira Ambassador (Versão 2). A maior parte dos móveis do STF é de
sua autoria.
O ministro do STF Alexandre de Moraes não
precisou da cadeira para afastar do cargo o governador do Distrito Federal,
Ibaneis Rocha (MDB), que se omitiu durante o vandalismo, nem para mandar
prender o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública de
Brasília Anderson Torres, suspeito de conivência com os atos golpistas. Zalszupin
faleceu em 17 de agosto de 2020, aos 98 anos de idade, e, como Peretti, não
está vivo para acompanhar a restauração de suas obras. Ironicamente, a cadeira
foi desenhada para que os ministros do Supremo pudessem suportar de forma mais
anatômica e serena possíveis as longas sessões da Corte.
O poeta e crítico de arte Ferreira Gullar
dizia que a arte existe porque a vida não basta. A política é parte da vida. A
presença de obras de arte nos palácios da Praça dos Três Poderes e da
Esplanada, como os da Justiça e do Itamaraty, tem por objetivo humanizar o
poder político, associar a dureza do concreto armado aos sonhos e à poesia
ensejados pela construção de Brasília. O que aconteceu no domingo foi uma
agressão não apenas aos Poderes da República, mas, também, à construção da
identidade nacional.
Como se sabe, uma nação não existe apenas
por causa do seu território e sua população, mas em razão de um estado psíquico
comum, cuja expressão maior é a sua cultura. Os palácios e os interiores na
nossa capital estão entre o que existe de mais original e valioso na nossa
arquitetura, nas artes plásticas e no design. Existe muito simbolismo na
política, que é mais importante para a preservação do poder do que sua
estrutura física. Ao contrário do que pretendiam os arruaceiros, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva saiu mais fortalecido da crise, o Congresso e o
Supremo, também. Nesse episódio, a harmonia entre os Poderes, um dos princípios
da Constituição, ao lado da independência, mostrou porque é tão importante para
preservar a democracia.
Um comentário:
Excelente artigo,quem sabe,sabe!
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