O Estado de S. Paulo
Se a carne não é coisa de pobre, e por isso não entra na cesta básica, é um ardil inverso dizer que cerveja não é coisa de álcool, para fazê-la barata
Viver é que vai virar pecado se proteína não entrar na cesta básica, cerveja for considerada menos álcool e o mantra “chegou na sua mão, andou de caminhão” perder o sentido pela associação do diesel com transgressão sanitária e ambiental. Enquanto o ministro vai a Roma convencer o papa de que tributos cobrados por César devem ser maiores do que os devidos a Deus, lembro o zelo da mãe de Manoel de Barros para com o filho sensível: “Menino, você vai carregar água na peneira a vida toda”. Imposto frágil com desculpa dá desordem à exceção.
O poeta do Pantanal não é um poeta à toa.
Nunca escondeu não ter habilidade para clarezas, embora seja cristalina sua
opinião de que a importância de uma coisa é medida pelo encantamento que a
coisa produz em nós. Coisa meio difícil, reconheço, em país onde os rios correm
para as nascentes. Má tradição quando a lei do imposto ousar definir que só
rico deve comer carne, que cerveja é álcool leve e que é pecado ônibus e
caminhão usarem o combustível disponível nas condições atuais dos motores do
País. Realismo é imaginar pelo menos carne moída, asa de frango e tilápia na
cesta básica. Mas realismo fantástico é ver o diesel barato vendido em lata
nos Rock&Lolla&Country urbanos e suburbanos e a cerveja
patrocinada servida em serpentina na bomba de gasolina.
Se democracia não é neologismo, o cheio pode
ser vazio, melhor estimular o que não faz mal. O poeta ganhou prêmios
inventando palavras e abastecendo o abandono de esperança. Compensa o
infortúnio dos necessitados de proteína, transporte e abstinência sugerir que
catástrofe é quando as coisas continuam como estão.
A maior porcaria é desejar sem ser preciso. O
Brasil político, desnivelado pelas injustiças e o destino, só se sente
protegido pela visão carnavalesca da justiça. Direitos, direitos, bradam juízes
e procuradores, sem dizer que, inconscientemente, pedem é mais protetores dos
direitos. Sem interesse em praticar o costume dos vencedores, o Brasil não vê o
imposto como empréstimo da sociedade ao governo para realizar suas funções. O
que exige consentimento e sensatez no uso do poder de tributar. E desconfiar do
adulador com seu burro carregado de ouro.
Nenhuma isenção pode ser um desperdício, ou
privilégio, uma insignificância. Mas, quando a situação não está decidida,
pensando melhor, ainda há tempo de impedir o erro. Governar com múltiplos
partidos vazios e não tendo o governo um centro de gravidade próprio, é
impossível sintonizar suas decisões com a necessidade geral. Ainda mais quando
populismos pontuais, muitos nadas, movem os Três Poderes. O Brasil precisa
voltar a ser uma república compreensível. Boa oportunidade num governo de dois
constituintes. Interromper a sina da Federação de Estados inimigos, cada um
fazendo o que decide fazer. A União não é uma cômoda com 27 gavetas.
Melhor que nomear é aludir, diz o poeta. Que
tal aceitar as recentes recomendações do Conselho Nacional de Saúde aos
Ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome;
presidências do Senado e da Câmara; Secretaria Extraordinária da Reforma
Tributária? Se nossa sociedade tem compromisso com o futuro, é bom saber que
imposto seletivo não freia o malefício da soberba de chamar álcool de bebida
leve. Bebida alcoólica é uma coisa só, alíquota única faz bem à saúde. A
vantagem ainda é que o País vai arrecadar mais parando de pagar cerveja para
todo mundo.
Parlamentares não devem ler nada que não
exija esforço ou não exija nada. A vida são deveres. Legisladores, juízes e
governantes não devem expressar com mordacidade ou de forma intensa demais sua
emoção. Melhor também ficar alerta a natureza para enfrentar tributariamente,
de forma não improvisada, tragédia desoladora como a que se abateu sobre o Rio
Grande do Sul. Não somos um país que mora no fim de um lugar qualquer.
É hedonismo demais permitir publicidade de
cerveja a qualquer hora e lugar, visando a gente de qualquer idade. É dose,
seduzir usuários, como tabaco da terra de Marlboro, para se tornarem social e
tolerantemente responsáveis pela cifra que faz a cerveja monopólio de 90% do
consumo de álcool no País. Organização e ordem é o sonho de uma boa reforma
tributária que pode fazer o Estado deixar de apoiar o esdrúxulo costume
alimentar do povo que tolera ver o álcool mais prestigiado do que a carne. Ora,
se a carne não é coisa de pobre, e por isso não entra na cesta básica, é um
ardil inverso dizer que cerveja não é coisa de álcool, para fazê-la barata.
A reforma tributária precisa também estar
atenta à perda da razão da máxima do economista John Maynard Keynes, que dizia
que no longo prazo estaremos todos mortos. Hoje, a equação é de que no longo
prazo ainda estaremos todos vivos. Tributação justa faz a expectativa econômica
se harmonizar com a expectativa de vida. Prisioneiro de escolhas limitadas,
ninguém vai conseguir desbadalar o sino do mau costume. No Vaticano, Francisco
deve ter alertado a Fernando Hadadd: ministro, sabemos que tudo o que acontece no
mundo é vontade divina, mas, se der errado, quem vai levar a culpa é você.
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