Folha de S. Paulo
Preferimos atacar e expor contradições a se
engajar em um debate construtivo
Foi Carl Schmitt quem definiu com muita
propriedade: a política se funda na distinção entre amigo e inimigo. Por trás
de todas as discussões técnicas, de todos os argumentos e do embate de valores
abstratos há a realidade mais básica do conflito irreconciliável entre dois
grupos humanos que estão dispostos a matar para preservar seu modo de vida.
Isso vale sobretudo para a relação entre povos —e seus Estados— mas está cada
vez mais presente na política doméstica de cada país, também ela constituída de
identidades coletivas que enxergam no outro uma ameaça.
Contra Schmitt, com milênios de distância, está Aristóteles, cuja filosofia política era acima de tudo sobre como bem governar a sociedade. Diferentes formas de governo e diferentes leis devem ser conhecidas e discutidas para garantir uma ordem social justa e que permita o florescimento humano.
A tensão entre os dois sempre fará parte da
política: promoção do bem comum —ou, vá lá, de alguma agenda— e disputa pelo
poder são dois lados da mesma moeda. Mas hoje é Schmitt quem está por cima.
Preferimos atacar o inimigo que mora ao lado
do que engajar num debate construtivo. Expor as contradições do defensor médio
do lado oposto —reais ou imaginadas—, para então poder rotulá-lo de
"hipócrita", é o que passa por discussão política, como bem
apontado pelo
artigo de Deborah Bizarria na sexta-feira.
Mesmo num tema global como a guerra Israel-EUA X
Irã, o principal alvo do brasileiro que se posiciona são seus rivais
ideológicos aqui no Brasil. O esquerdista que supostamente apoia o regime dos
aiatolás; ou o direitista supostamente vendido ao imperialismo norte-americano.
O primeiro, movido por antissemitismo; o segundo, por racismo. Ou seja, algum
ódio irracional, atávico, ao mesmo tempo explica e desqualifica o odiado
adversário. Você, ao contrário, é movido pelo real amor à justiça e à
igualdade.
Penso que a prioridade número 1 para
aprimorar nossa política é um número maior de pessoas se convencer que seu
próprio grupo não é um bastião de valores mais elevados. Amigos e inimigos, sob
cores e fantasias diferentes, são muito mais parecidos do que gostam de
acreditar.
Ao atribuir o mal da sociedade ao coletivo
adversário, você dá às lideranças do seu lado a permissão moral para traírem os
ideais que elas deveriam representar. É acreditando piamente defenderem o lado
que valoriza a vida que muitos defensores de
Israel chancelam massacres. E é em sua objeção ao imperialismo que
tantos aceitam as piores formas opressão.
Não é ingênuo acreditar na possibilidade de
um meio-termo justo, num padrão objetivo 100% livre de partidarismo? Assim de
forma pura, com certeza. Nenhum de nós é desprovido de seus
vieses. Nossa escolha é se damos livre curso a eles ou se buscamos
limitá-los, mirando uma realidade sempre complexa e cheia de nuances.
Apontar uma suposta "hipocrisia" do
lado adversário em nada ajuda a mostrar que aquilo que você defende está certo.
Não faltam desumanidades e contradições para todos. Resistamos a Schmitt!
Trabalhar para reduzir as contradições do nosso próprio lado, aí sim, pode nos
ajudar a progredir e, quem sabe, encontrar consensos entre os que hoje se
odeiam e recuperar algum tipo de bem comum.
Nenhum comentário:
Postar um comentário