terça-feira, 24 de junho de 2025

Carl Schmitt x Aristóteles - Joel Pinheiro da Fonseca

Folha de S. Paulo

Preferimos atacar e expor contradições a se engajar em um debate construtivo

Foi Carl Schmitt quem definiu com muita propriedade: a política se funda na distinção entre amigo e inimigo. Por trás de todas as discussões técnicas, de todos os argumentos e do embate de valores abstratos há a realidade mais básica do conflito irreconciliável entre dois grupos humanos que estão dispostos a matar para preservar seu modo de vida. Isso vale sobretudo para a relação entre povos —e seus Estados— mas está cada vez mais presente na política doméstica de cada país, também ela constituída de identidades coletivas que enxergam no outro uma ameaça.

Contra Schmitt, com milênios de distância, está Aristóteles, cuja filosofia política era acima de tudo sobre como bem governar a sociedade. Diferentes formas de governo e diferentes leis devem ser conhecidas e discutidas para garantir uma ordem social justa e que permita o florescimento humano.

A tensão entre os dois sempre fará parte da política: promoção do bem comum —ou, vá lá, de alguma agenda— e disputa pelo poder são dois lados da mesma moeda. Mas hoje é Schmitt quem está por cima.

Preferimos atacar o inimigo que mora ao lado do que engajar num debate construtivo. Expor as contradições do defensor médio do lado oposto —reais ou imaginadas—, para então poder rotulá-lo de "hipócrita", é o que passa por discussão política, como bem apontado pelo artigo de Deborah Bizarria na sexta-feira.

Mesmo num tema global como a guerra Israel-EUA X Irã, o principal alvo do brasileiro que se posiciona são seus rivais ideológicos aqui no Brasil. O esquerdista que supostamente apoia o regime dos aiatolás; ou o direitista supostamente vendido ao imperialismo norte-americano. O primeiro, movido por antissemitismo; o segundo, por racismo. Ou seja, algum ódio irracional, atávico, ao mesmo tempo explica e desqualifica o odiado adversário. Você, ao contrário, é movido pelo real amor à justiça e à igualdade.

Penso que a prioridade número 1 para aprimorar nossa política é um número maior de pessoas se convencer que seu próprio grupo não é um bastião de valores mais elevados. Amigos e inimigos, sob cores e fantasias diferentes, são muito mais parecidos do que gostam de acreditar.

Ao atribuir o mal da sociedade ao coletivo adversário, você dá às lideranças do seu lado a permissão moral para traírem os ideais que elas deveriam representar. É acreditando piamente defenderem o lado que valoriza a vida que muitos defensores de Israel chancelam massacres. E é em sua objeção ao imperialismo que tantos aceitam as piores formas opressão.

Não é ingênuo acreditar na possibilidade de um meio-termo justo, num padrão objetivo 100% livre de partidarismo? Assim de forma pura, com certeza. Nenhum de nós é desprovido de seus vieses. Nossa escolha é se damos livre curso a eles ou se buscamos limitá-los, mirando uma realidade sempre complexa e cheia de nuances.

Apontar uma suposta "hipocrisia" do lado adversário em nada ajuda a mostrar que aquilo que você defende está certo. Não faltam desumanidades e contradições para todos. Resistamos a Schmitt! Trabalhar para reduzir as contradições do nosso próprio lado, aí sim, pode nos ajudar a progredir e, quem sabe, encontrar consensos entre os que hoje se odeiam e recuperar algum tipo de bem comum.

 

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