terça-feira, 24 de junho de 2025

Da sala de aula para um gabinete ministerial - Aylê -Salassié Filgueiras Quintão*

O que são políticas públicas? Já no final de um curso de Sociologia Política, havia estudado ideologias, partidos políticos, Poderes e Modelos de Estado, regimes de governo, funcionamento das instituições, hierarquias , direitos de cidadania, minorias, meio ambiente, assim por diante . De repente, já na reta final do semestre letivo, apareceu na sala de aula um professor com a proposta de um curso compactado de políticas públicas , complementar, de 30 dias. 

"Que é isso, professor! Logo agora! Todos estão se preparando para a formatura!!! Já estamos praticamente de férias!" Era um plano de um conteúdo denso e rápido para coroar a graduação de uma das primeiras turmas da noviça Universidade de Brasília . Apresentava uma bibliografia vasta, diversificada e fenomenológica - visão simbólica da realidade . Havia surgido de uma autocrítica docente sobre os objetivos originais da UnB. Todos ali eram muito jovens, cabeças cheias de teorias e conceitos. Mas, ninguém tinha ideia exata do que se tratavam as tais políticas públicas.

 Ao pensarem a UnB, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira preconizaram para ela, próxima da Praça dos Três Poderes, a responsabilidade assessorar na governança do Estado, ajudando na formulação e execução de políticas públicas para o País. Uma luz havia sido acesa tardiamente na cabeça de um professor, ao tomar conhecimento do misterioso projeto da universidade pública, democrática, autônoma, gratuita e laica, que poucos conheciam, inclusive os reitores. De fato, não existia um Plano Diretor. Eram idealizações, publicadas por uma gráfica improvisada no campus.

 Na Brasília, dos anos sessenta, o Estado demandava economistas, sociólogos, administradores , professores, advogados, jornalistas preparados para pular de imediato de uma sala de aula para os gabinetes ministeriais , responsáveis pela execução das políticas mineral, agrícola, industrial, de educação, saúde, finanças, meio ambiente, indigenista , ou atuar no Congresso, ajudando na elaboração de projetos de lei , que configuravam políticas específicas como essas. O nível parlamentar era tão provinciano que alguns deputados - até senadores - eram alunos da UnB. Aquela turma seria uma oportunidade para estabelecer a ponte da Universidade com os Poderes da República.

A estrutura do Estado configurava-se , até então, à luz da patrimonialismo do Estado, com políticas setoriais vacilantes, abrigando o tal poder federativo ou regionalista. No Rio de Janeiro, milhares de pessoas eram empregadas no aparelho de Estado, após as eleições, em retribuição aos apoios recebidos pelos vencedores. Um "filhotismo", que assim tornava funcionários públicos estáveis, pessoas sem qualquer formação para entender o Poder e o Papel do Estado. Haviam órgãos com mais de 80% de técnicos administrativos médios e, sobretudo, datilógrafos, contínuos e motoristas. O Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) recebia os nomes indicados pela Presidência da República, e simplesmente redistribuía-os dentro da máquina do Estado, sem qualquer consonância com as políticas e competências estabelecidas em lei. Não havia uma "Nomenklatura", uma burocracia de Estado, o que iria aparecer nos governos militares . Não se pensava também no famigerado aparelhamento dos órgãos públicos, com o sentido de dar perpetuidade aos governantes . Manobravam-se  as coisas públicas sem Orçamento aprovado.

Uma das primeiras tentativas de organizar essa balburdia na estrutura e funcionalidade do Estado tinha vindo das Comissões Brasil-Estados Unidos (final da década de 1940), ainda no tempo de Getúlio e Dutra. Procurava-se formular e desenvolver projetos conjuntos no Brasil , e abriam-se oportunidades de doutoramentos, mestrados e treinamentos em universidades norte-americanas para estudantes brasileiros. Inspirado nas suas conclusões, Dutra havia tentado executar um tal Plano SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia); Getúlio um Plano Rodoviário Nacional . E ficavam por aí. O restante era retórica. A força do patrimonialismo no interior dos estados era devastadora. Vargas chegou a criar o ISEB- Instituto Superior de Estudos Brasileiros(1955) , com o propósito de discutir ideias e promover programas setoriais dentro de uma perspectiva nacional-desenvolvimentista, na qual Kubitschek embarcou com um Plano de Metas, que funcionaria apenas no seu período de governo (1956-1961). Amparava-se na teoria da substituição de importações . Logo desapareceria no governo de Jânio Quadros, sem plano algum, e perdido nas ambiguidades de Goulart. Finamente, foi enterrado pelos militares. 

Getúlio havia criado o IBGE e, logo surgiria também a Fundação Getúlio Vargas e o Instituto Brasileiro de Economia, propondo-se a produzir estatísticas macroeconômicas , bem como qualificar pessoal para a atuar na gestão das políticas setoriais . Ali estava Eugênio Gudin, nascido em 1886, autor do primeiro livro sobre economia no Brasil e criador do curso de Ciências Econômicas da UFRJ. Defendia o livre mercado e criticava o intervencionismo estatal. Pai dos economistas brasileiros, suas convicções políticas iriam inspirar uma geração de profissionais formados por aqui mesmo . Por oposição ideológica, iria emergir um outro grupo capitaneado por Florestam Fernandes , sociólogo, etnólogo, patrono da sociologia no Brasil, com contribuições notórias sobre racismo, direitos humanos e desigualdades . Mas, nas diferenças, eles se fundiram no interior do Estado.

Do primeiro grupo emergiriam San Tiago Dantas, Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos. Este último trouxe sua consultoria privada (Consultec) para dentro aparelho do Estado, transformando-a no IPEA- Instituto de Planejamento de Políticas Públicas - e , em seguida, criou o Ministério do Planejamento. Dessa conjuntura sairia o primeiro plano de desenvolvimento integrado para o País , o PAEG (PAEG). Centralizadores, tanto Campos quanto os militares, criaram os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs), no estilo Planos Quinquenais russos, e para elaborá-los, instituíram uma "Nomenklatura" - grupo seleto de intelectuais colocados em posições de poder , como no sistema soviético. Essa elite governante controlava as políticas públicas por meio de programas e projetos do Governo. Os velhos órgãos que cuidavam das administração pública desapareceram.

Embora vista como um "ninho de revolucionários", a UnB iria cumprir, entretanto, papel decisivo na configuração e modernização da estrutura do Estado Brasileiro, suprindo-o com profissionais e técnicos com formação superior naquelas áreas chaves para o gerenciamento das políticas públicas. Essa expertise foi quase interrompida pelas constantes mudanças de reitores. Mas milhares de jovens terminaram saindo das suas salas de aula para compor o corpo funcional do Estado. Alguns tornaram-se parlamentares, ministros, presidentes de empresas públicas e até Presidente da República. O Plano Real , que acabou com a hiperinflação (chegou-se a 3.000% a.a), saiu parcialmente do curso de economia da UnB. A profissionalização do serviço público, gerou altas taxas de crescimento do PIB. Daí duvidar-se que o aparelhamento do Estado e o "filhotismo" possam ser ainda recorrentes. 

* Jornalista e professor 


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