O Globo
O caso Poze do Rodo nos dá uma chance: parar
de julgar e começar a entender. Não romantizar, não absolver, mas compreender
A libertação do MC
Poze do Rodo é mais que um episódio jurídico. Ela inaugura um novo
tempo, um novo código e um novo Brasil — o Brasil que se cansou de ser
invisível e maltratado. Um país que não aceita mais ser reduzido ao
estereótipo, ao silêncio ou ao medo. Um Brasil que, apesar de ter sido
construído à margem, se recusa a continuar sendo tratado como resto.
Poze é símbolo de algo maior. Ele representa uma juventude das favelas que não espera mais nada do sistema. Que aprendeu a andar com os próprios pés, a falar com a própria voz, a criar os próprios caminhos. Ele é fruto de um processo coletivo de empoderamento, de afirmação, de construção de identidade, de enfrentamento da exclusão.
É importante deixar claro: não sou a favor de
crimes, nem de qualquer tipo de ação errada. Mas falo a partir do território,
onde as coisas acontecem como são — e não como deveriam ser. Minha opinião
sobre certo ou errado é secundária diante de uma realidade escancarada há
décadas. E parte dessa realidade é o tratamento desigual, a truculência
seletiva da polícia e a cobertura sensacionalista da mídia, sempre ávida por
espetáculo quando o personagem é preto e periférico.
A cobertura sobre Poze teve como foco central
a humilhação, não a informação. Questionaram seus bens, como se tudo o que ele
conquistou fosse automaticamente fruto do crime. Criminalizaram o consumo, a
estética, o sucesso. Sem processo legal, sem apuração, sem investigação.
Julgaram antes mesmo de entender. E isso não é novo — é método. É a pedagogia
da vergonha aplicada sobre corpos negros.
A repressão, longe de produzir intimidação,
gerou o oposto: acirrou os ânimos, aumentou a raiva da juventude em relação à
polícia e ao sistema. As instituições perdem legitimidade quando tratam de
forma tão desigual seus cidadãos. E, nesse vácuo, a juventude constrói suas
próprias referências, suas lideranças, seus heróis. Queiramos ou não, quem para
uns é vilão, para outros será símbolo de resistência.
Muita coisa ainda continuará igual — a violência, a
seletividade penal, o racismo estrutural. Mas muita coisa já mudou. E mudará
mais. Porque as favelas estão entendendo seu próprio poder. Não só de consumo,
mas de opinião, de influência, de condução da pauta pública. Essa juventude,
aceita ou não, não está preocupada com isso. Ela seguirá existindo, criando,
rompendo as cercas simbólicas da exclusão.
O caso Poze, com toda a sua complexidade, nos
oferece uma chance: parar de julgar e começar a entender. Não romantizar, não
absolver, mas compreender antes de condenar. A ausência do Estado é a apartação
da sociedade, não pode se resumir a prisão ou não de MC vindo de favela!
Porque, se o Brasil que pauta e o Brasil que é pautado não se encontrarem em
algum lugar de escuta e dignidade, viveremos uma guerra sem fim.
Esse Brasil que emergiu na porta do presídio
é parte do Brasil real que não está nos tribunais, nas redações ou nos
gabinetes. Está nas ruas, nos becos, nos palcos, nos fones de ouvido. E não
pede licença para existir. É vida real, sem tédio, sem roteiro. É a vida como
ela é!
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