O Estado de S. Paulo
O desafio aos democratas não é vencer as
próximas eleições, mas encontrar um eixo que aglutine os brasileiros
Não é a toda hora que um ex-presidente da
República, alguns de seus assessores e um seleto grupo de oficiais das Forças
Armadas sentam no banco dos réus perante o Supremo Tribunal Federal (STF). O
julgamento deles, e sua provável condenação, atesta que a Constituição está
sendo respeitada, especialmente no que há nela de proteção à democracia:
estarão fora da lei todos os atos que configurarem uma tentativa de golpe de
Estado, como os praticados por aqueles ora em julgamento.
Embora com amplo direito de defesa, os réus
não conseguem contrastar as evidências de seu envolvimento na trama golpista.
Limitam-se a repetir justificativas desencontradas e a assoprar as brasas da
polarização, para tentar manter viva a adesão social a um imaginário
apocalíptico e falsamente “patriótico”.
É verdade que vivenciamos um processo de judicialização generalizada, mas o STF está a respaldar a integridade do nosso Estado de Direito. Pode faltar uma dosagem melhor em suas intervenções. Afinal, qualquer pessoa ou instituição, carregada de poder, estará sempre exposta ao cometimento de erros e abusos. Sobretudo se houver fraqueza dos demais Poderes. Se o Congresso e o governo funcionam mal, voltados para os próprios interesses (emendas e eleições), o Judiciário age numa espécie de vazio, no qual podem frutificar excessos.
Há problemas sistêmicos em nosso
presidencialismo. Os desequilíbrios federativos atravancam o sistema, que, para
complicar, está capturado pelo clientelismo, hoje praticamente
“profissionalizado”, mas fiel a seu padrão: saquear o Tesouro e extrair vantagens
e benefícios do governo de plantão. É um tipo de presidencialismo que “impede”
o governo de governar, ou o força a governar mal.
Some-se a isso a má qualidade da
representação parlamentar. Deputados e senadores olham de forma torta para o
País. Misturam incompetência técnica com corporativismo e excesso de interesses
particulares, como mostra a luta por emendas parlamentares, com as quais se
distribuem “favores” a Estados e municípios, e se reforçam os currais
eleitorais. O Congresso clama por emendas ao mesmo tempo em que exige menos
gastos do governo. É um pandemônio ingovernável, disfuncional.
O governo não ajuda a corrigir essas
distorções. Cede às chantagens do Congresso, não forma boas equipes
ministeriais e não apresenta um projeto de futuro e de governança. Perde
conexão com a sociedade. Mostra-se mais interessado em conter o desprestígio do
presidente da República, agitase em manobras populistas de limitado alcance
(pobres x ricos, por exemplo) e aprisionase na preparação para a batalha
política de 2026.
A população sente que a situação está
incerta, tendendo a piorar. Foge, assim, de quem ocupa o poder,
responsabilizando seus integrantes por tudo o que não funciona. A desilusão
caminha com a frustração e alguma raiva, gera desconfiança e desinteresse pela
política, o que comprime ainda mais os espaços de manobra do governo.
Os partidos não compreendem o valor das
coalizões programáticas. Agarram-se a surradas alianças por apoio eleitoral.
Não levam a sério o prejuízo causado pela falta de consensos sobre temas e
problemas estratégicos.
As disputas eleitorais ficam assim
insalubres, repetitivas, sem fornecer esperanças. Viram batalhas pelo poder,
nas quais não há moderação, nem diálogo, mas tão somente a perspectiva de
“aniquilar o adversário”. Ao abrirem-se as urnas, o quadro resta imutável, e o
governo eleito nascerá envolto nas mesmas dificuldades de sempre, com a
população distante e desconfiada.
O governo Lula parece acossado pelas
pesquisas que reiteram sua impopularidade. O clima de rejeição machuca um
governo que se diz vocacionado a “salvar o País” e que se apresentou como
piloto de uma frente democrática, mas nada fez para celebrar essa frente. Seus
integrantes estão atônitos diante de uma rejeição que brota do esgotamento da
polarização Lula x Bolsonaro, do surgimento de uma direita moderada, das falhas
governamentais e da nova sociabilidade gerada pela reestruturação do
capitalismo.
A bagunça política e a incapacidade
governamental de explicar seus atos impulsionam a rejeição. Não se trata de
falhas de comunicação ou de estridência oposicionista. Mas de letargia, como se
Lula estivesse a romper com seu passado glorioso, que tanto o beneficiou nas
últimas décadas. Os indícios disso estão nas pesquisas de opinião, mas flutuam
no ar que se respira nas ruas, nas mídias e redes sociais.
O problema está dado. Sua solução vai além de
coreografias políticas, discursos populistas, trocas ministeriais e propaganda.
Como lembrou o sociólogo Paulo Baía ( Agenda do Poder, 4/6/25), passa pela
compreensão de “um país emocionalmente fatigado, dividido e cada vez mais
desconectado do pacto simbólico que elegeu o líder petista”. O desafio aos
democratas não é vencer as próximas eleições, mas encontrar um eixo que
aglutine os brasileiros. Na frase de Baía, “é reconstruir vínculos, reinventar
sentidos, reencantar o ato de governar”.
*Professor titular de Teoria Política da Unesp
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