O Estado de S. Paulo
Os pecados destes ‘patriotas’ talvez sejam redimidos pelo ente que paira ‘acima de todos’, menos de Trump. Mas poderá a nação brasileira anistiá-los por antecipação?
Os “patriotas” das arruaças, do culto às
armas e das camisetas amareladas ganharam votos gritando “Brasil acima de tudo”
e “Deus acima de todos”. Dupla pobreza de espírito. O primeiro slogan nunca
passou de um plágio de mau gosto do bordão nazista Deutschland über alles
(“Alemanha acima de tudo”). Quanto a “Deus acima de todos”, bem, nenhuma
novidade. O Altíssimo assim é chamado por habitar supostamente píncaros
celestiais insuperáveis. Quanto ao mais, o dístico nunca parou de pé: Deus
deveria ser posto acima do Brasil ou seria o contrário?
Com o tempo, ficou evidente que os tais “patriotas” eram na verdade estrangeirotas: patriotas do estrangeiro. Um deles, em 2017, numa excursão à Flórida, chegou a bater continência para uma bandeira dos Estados Unidos estampada numa tela eletrônica. Ao microfone, o voluntário da servidão incondicional confessou: “A minha continência à bandeira americana”. Em 2019, o mesmo personagem arriscou um “I l ove you” para Donald
Trump, que passava por ali apressado. Em
síntese, o que eles queriam dizer era “Brasil acima de tudo”, desde que não
acima dos Estados Unidos, e “Deus acima de todos”, menos de Donald Trump.
Outro dos “patriotas” fugiu do Brasil e dá
expediente em Washington, onde faz reuniões obscuras com autoridades obtusas de
um governo tanático para articular sabotagens contra a economia brasileira e
chantagens contra as autoridades daqui. A infâmia chegou a tal ponto de
histeria e absurdos que o clã vem sendo classificado como traidor. Procede.
Há gente capacitada escarafunchando os
regimentos do Poder Legislativo para detectar as tipificações do desvio,
enquanto bons oradores vão a comícios para criticar esse “patriotismo”
lesa-pátria. Têm razão. O problema é que existem aqueles que fingem não ver
nada de esquisito. Como alertálos? Incrível como não querem enxergar. O
esquisito, o atípico, é o que temos hoje de mais fatídico, mais cínico, mais
explícito e mais apodítico.
Num dos livros do psicanalista francês
Jacques Lacan,
Quatro conceitos fundamentais da Psicanálise,
lemos que “o desejo do homem é o desejo do Outro”. Devíamos buscar nessa chave
analítica uma luz para entender o “patriotismo” que se define pelo negacionismo
da Pátria e se ajoelha diante da bandeira alheia para rifar a sua própria.
A frase de Lacan – “o desejo do homem é o
desejo do Outro” – ensina, entre outras coisas, que um cidadão genérico, uma
pessoa como eu ou você, com todo o respeito, quando deseja, expressa menos um
desejo original, pessoal, e mais o desejo dominante da ordem simbólica que o
contém. Esse Outro com “O” maiúsculo não é um outro qualquer, como um cunhado
ou um colega da repartição, mas um senhor sobre-humano, capaz de ordenar o
desejo dos mortais de carne e osso – sobretudo daqueles mortais que não têm
nada de coluna vertebral, como é o caso. O Outro maiúsculo não se compadece de
nada nem de ninguém. Exemplos? Aqui estão: a autoridade sobre a qual se erigiu
a Igreja Católica, ou a sua pedra fundamental; o capital, igualmente; o
imperialismo que anima a Casa Branca. O desejo do homem é o desejo que o Outro,
maiúsculo, diz ao homem, minúsculo, para fazer de conta que sente.
Você pergunta a um gerente de marketing, um
dirigente sindical ou um operador da bolsa qual o ideal de beleza que ele tem e
ele começa a descrever minuciosamente a Barbie. O desejo, nele, é o dedo em
riste do Tio Sam, mas ele mesmo não sabe. Barbie para todos.
O “patriotismo” dos trumpatetas brasileiros
reproduz a fórmula do “desejo do Outro”, mas em tintas rastaqueras. Adestrados
pelos filmes de Tom Cruise, de Stallone e de Chuck Norris, os “patriotas” do
Outro são tão rasteiros que nem souberam substituir a bandeira dos Estados
Unidos pela do Brasil na hora de fazer seu teatrinho. Encenam uma paródia
tosca: adoram uma bandeira que não é a deles, numa terra que não lhes concede
um reles passaporte.
Dá pena. Tanta pena que o suposto Deus poderá
perdoálos, pois eles, ainda que premeditem com vileza o mal que querem fazer ao
Brasil, não sabem o que fazem. Talvez seus pecados sejam redimidos pelo ente
que paira “acima de tod o s ” , menos d e Dona l d Trump. Mas e quanto à nação
brasileira? Poderá ela anistiálos por antecipação? Poderá tratá-los como
semoventes inconscientes e inconsequentes – o que, de resto, eles são?
Espera-se que não. Em 1947, o Partido
Comunista Brasileiro foi cassado porque seu líder, Luiz Carlos Prestes, teria
dito numa entrevista que, numa guerra entre Brasil e União Soviética, ficaria
do lado de Stalin. A verdade é que Prestes nunca disse isso, apenas fez um
raciocínio hipotético: se o Brasil apoiasse uma guerra imperialista contra o
Kremlin, ele lutaria para derrubar o governo brasileiro. Foi uma declaração de
mau jeito, sem dúvida, e ela serviu de pretexto para colocarem o PCB na
clandestinidade, injustamente. Agora, o caso é muito mais sério. Os “patriotas”
do Outro se associaram ativa e publicamente a uma potência estrangeira para
mover covardemente uma guerra comercial, diplomática e moral contra o Brasil. E
aí? •
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