- Revista Veja
O discurso belicoso de Jair Bolsonaro na ONU rompe com a tradição de evitar discussões sobre assuntos internos diante de estrangeiros
Nos primeiros dez anos da ditadura militar, o embaixador João Augusto de Araújo Castro, crítico da política externa brasileira, dizia que o país tinha o complexo de Greta Garbo, a estrela de filmes como A Dama das Camélias. Era uma referência à frase da atriz: “I want to be alone”. O Brasil votava nas instâncias internacionais em linha seguida só pelos Estados Unidos, pelo Portugal salazarista, pela África do Sul do apartheid e por Israel. Assim como Greta Garbo, o Brasil queria ficar sozinho. Hoje, voltamos a manifestar esse complexo. Se a meta da diplomacia do presidente Jair Bolsonaro for o isolamento, o discurso proferido no último dia 24 na ONU atingiu plenamente o objetivo: o país se apequenou, ficou isolado na extrema direita do espectro ideológico. Do ponto de vista de um diplomata profissional, a performance do nosso presidente na Assembleia-Geral foi uma aula de antidiplomacia, o oposto do que deve ser um discurso de um líder mundial que busque melhorar a imagem e construir amizades.
A linha de Bolsonaro não me surpreendeu. Tudo o que o presidente havia dito antes, que iria até de maca para a ONU, mostrava uma atitude de provocação, de acordo com o segmento de eleitores mais radicais, aqueles 15% que formam seu núcleo duro de apoio. O discurso foi a expres¬são de uma diplomacia belicosa, de valentia em defesa da soberania nacional. Em diplomacia, a forma e o tom são quase tão importantes quanto o fundo. No discurso de Bolsonaro, tudo é agressivo: o tom duro, ríspido, a cara fechada, nenhum sorriso, nenhum senso de humor.
O fundo se parece ao do retrato formado pelas palavras de Trump: defesa da soberania, denúncia do globalismo, ataques ao socialismo, ao comunismo, à mídia, invocação de Deus, apelo ao eleitorado religioso. A semelhança provém da mesma matriz ideológica que inspirou os dois textos: o movimento de Steve Bannon, um dos consultores do discurso brasileiro. A diferença está nos inimigos escolhidos: o discurso de Trump é “briga de cachorro grande”, investe contra a China e o Irã; o de Bolsonaro briga com a Venezuela de Maduro e a decadente Cuba de nossos dias.
Antes do evento, eu até me perguntava se seria possível a Bolsonaro piorar sua imagem, que já estava no fundo do poço. Nisso me enganei. Ele confirmou diante do público externo tudo de pior que até então os comentaristas diziam dele. Ele se revelou no seu pior aspecto, até na apologia da ditadura militar, na sua insensibilidade aos grandes temas diplomáticos mundiais, ambientais e de direitos humanos. Da mesma forma que Trump, nem sequer mencionou o tema central desta Assembleia-Geral: o perigo do aquecimento global causado pela ação humana. Não me parece que ele se importe com as consequências prejudiciais para os interesses políticos e econômicos do Brasil de sua postura externa. Ao se voltar para o eleitorado brasileiro, Bolsonaro demonstra estar muito mais preocupado com sua possibilidade de reeleição. O que ele teme é a perda de popularidade, a desilusão dos eleitores, os riscos ao seu poder dentro do Brasil. Para ele, o perigo está aqui dentro, não lá fora. É uma postura imediatista que descarta ou subestima os danos para exportadores, para o agronegócio e para a reputação do país.
Como mencionou em tuíte o senador Flávio Bolsonaro, o presidente repetiu na ONU o discurso que lhe deu a vitória nas eleições. Em alguns trechos, até parece falar numa campanha eleitoral, pois hostiliza seus adversários no Brasil, seus antecessores na Presidência, acusados de comprar parte da mídia e do Parlamento. Rompe com a tradição de todos os chefes de Estado de evitar tratar de disputas internas fora do Brasil. Com muita boa vontade, a única coisa que poderíamos dizer de positivo é que ele foi fiel a si próprio, não buscou enganar ninguém. Disse lá fora o que diz aqui internamente. Foi mais honesto do que no Fórum Mundial de Davos, onde disfarçava sua oposição ao “globalismo”.
É curioso que uma pessoa ciosa da soberania, como Bolsonaro, resolva “lavar a roupa suja” diante de estrangeiros num fórum global que ele despreza. Nos 21 anos do regime militar, os generais presidentes nunca iam à ONU. A única exceção foi Figueiredo, já no final da abertura, que compareceu à Assembleia-Geral para falar da crise da dívida externa. Os chanceleres da época eram quase sempre diplomatas de carreira. Eram eles que faziam o discurso de abertura na ONU, numa linha profissional, sempre comentando a pauta do ano.
É preocupante a transformação do Brasil no principal vilão global, papel até então do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte. Ele chamava atenção mais em razão de excessos na guerra às drogas. Não havia, no seu caso, um tema que mobilizasse a opinião internacional, como o da destruição da Amazônia. A postura extremada em matéria de meio ambiente, de povos indígenas e de direitos humanos liquida o pouco que restava do soft power brasileiro. O “poder suave” é o termo usado na diplomacia para definir a competência de um país para conseguir o que deseja por meio de sua cultura e de sua imagem, de sorrisos e paciência, em oposição a balas e canhões.
Um discurso dessa natureza tem consequências concretas, inclusive econômicas. Pouco antes da viagem de Bolsonaro, 230 fundos de investimentos, que gerem ativos na casa de 16,2 trilhões de dólares, externaram preocupação com a Amazônia. Uma manifestação desse tipo não é espontânea, mas resulta da pressão de investidores sensíveis às causas ambientais. Após o discurso do presidente, a situação vai piorar em matéria de atração de investimentos, de financiamentos, de comércio. Um país isolado terá dificuldades de se eleger para postos internacionais. O ingresso na OCDE ficará mais difícil, pois depende da aprovação de boas práticas ambientais.
Até mesmo os acordos que Bolsonaro mencionou, como o do Mercosul com a União Europeia e o que foi assinado com a Zona de Livre-Comércio da Europa, ficarão em profunda hibernação. Nenhum Parlamento de país europeu considerará a hipótese de aprová-los enquanto a situação aqui não evoluir.
* Rubens Ricupero é diplomata. Foi ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e embaixador nos Estados Unidos
Publicado em VEJA de 2 de outubro de 2019, edição nº 2654
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