- O Globo
Em Washington, Trump tem falado em guerra civil na eventualidade de perder o mandato, o que incentiva seus apoiadores mais extremistas
Por vezes, quem acompanha a ascensão e os descaminhos do presidente dos Estados Unidos em combustão na Casa Branca é acometido da sensação de déjà-vu ao se confrontar com o noticiário que brota em Brasília. Tomem-se dois exemplos recentes, pinçados do mês passado.
No dia 1º de outubro, Donald Trump alardeara via Twitter que a abertura do atual inquérito passível de desembocar num pedido de impeachment não passava, na verdade, de um golpe para lhe roubar o poder — “ a COUP ”, em maiúsculas, como gritou no teclado. Uma semana depois, num de seus destemperos matinais para microfones no Palácio da Alvorada, Jair Bolsonaro subiu o tom com a imprensa que o contraria. Além dos habituais “patifaria”, “covardia”, “esgoto” com que brinda reportagens independentes, arrostou: “Vocês querem me derrubar? Eu tenho couro duro, vai ser difícil...”
A segunda cena com eco nacional ocorreu na quinta feira, 24 de outubro, quando Trump anunciou o cancelamento pela Casa Branca e todas as agências federais das milhares de assinaturas dos principais jornais do país, o “New York Times” e o “Washington Post”. Criou fato novo quando já se tornara corriqueiro ouvi-lo tratar a imprensa livre de “inimiga do povo”, “traidora da pátria” e “lixo”. Uma semana depois, na quinta 31, Bolsonaro ordenou o cancelamento de assinaturas da “Folha de S.Paulo” em todos os órgãos do seu governo, e advertiu anunciantes do jornal para “prestar atenção”. “Espero que não me acusem de censura. Quem quiser comprar a ‘Folha’, ninguém vai ser punido por isso, manda o assessor dele, vai lá na banca e [...] e se divirta”, acrescentou no habitual linguajar de quem graceja com censura e tortura.
Ultrapassou, assim, a sua média de dois ataques semanais a jornalistas e/ou meios de comunicação desde que assumiu o poder. Melhor nem reproduzir os que foram disparados sem freios de civilidade mínima.
Mal sabe Bolsonaro que quem inaugurou a palmatória simbólico-econômica contra um órgão de imprensa foi o democrata John F. Kennedy, em 1962. O então presidente americano se aborrecera com reportagens críticas do “New York Herald Tribune” e proibiu que exemplares fossem entregues na Casa Branca. Levou um baita pito de um membro do Congresso: “Decisão infantil”, ensinou o republicano Steven Derounian em discurso que consta dos Anais de Capitoll Hill. “Convém o presidente Kennedy lembrar que no dia 20 de janeiro de 1960 ele foi empossado presidente, não coroado rei”. (Detalhe: como JFK não conseguia ficar sem ler o influente matutino, e a internet ainda não existia para ele contornar a própria ordem, coube a seu secretário de Imprensa o ridículo papel de traficar exemplares comprados em bancas para dentro do Salão Oval).
Esta semana, em voo solo mas na mesma rota do pai, Eduardo Bolsonaro, o deputado federal por São Paulo e ex-quase embaixador do clã em Washington, tampouco inovou. Em Washington, Donald Trump tem falado em guerra civil na eventualidade de perder o mandato, o que incentiva seus apoiadores mais extremistas a ameaçar deputados democratas pró-impeachment com mensagens de voz cavernosa: “Já estamos começando a nos organizar... estamos nos preparando, você é meu inimigo....”.
No Brasil, o filho 03 invoca o Ato Institucional mais feroz da ditadura militar brasileira como ferramenta a ser cogitada caso a voz das ruas se manifeste em moldes semelhantes às passeatas chilenas que emparedam o governo de Sebastián Piñera. Fez essas declarações em entrevista/palanque à jornalista Leda Nagle, e achou importante peitar a avalanche de reações à sua fala postando um vídeo feito às pressas no qual reafirma suas sombrias convicções. Somente a maciça condenação pública que se seguiu, somada à ameaça de sua imunidade parlamentar não ilimitada, levou o deputado a divulgar um pedido de desculpas “a qualquer tipo de pessoa que tenha se sentido ofendida”. Pelo menos neste espaço, desculpas não aceitas.
É sempre bom lembrar que, segundo o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (sim, “institucional”), a proposta de reformatar o AI-5 em caso de turbulência nas ruas não precisa ser descartada de todo. Apenas exigiria estudos, diz o militar, e precisaria passar “em um monte de lugares”.
Não, no pasará , como diz o clichê gravado pela História. Por mais que a citação ao AI-5 possa ter sido diversionismo para encrencas bolsonaristas, foi um tiro no pé. As encrencas não vão sumir nem o país vai se deixar assustar.
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