- Folha de S. Paulo
O Brasil vive de destruir seu passado. Talvez por isso nunca aprenda
Somos um país que destrói documentos, arquivos, registros, gravações e chuta a história pela janela. E só vamos saber disso depois, quando não se pode fazer mais nada. Talvez muitos não se importem. Eu me importo. Um passaporte, uma carteira de identidade, uma certidão de nascimento pode conter informações maravilhosas para um biógrafo. Já salvei alguns desses documentos de serem despejados no lixo por família ilustres, onde seriam recolhidos pelos catadores de papel e vendidos para as feiras das praças —quando passariam, subitamente, a valer dinheiro.
Ruy Barbosa, ministro da Fazenda entre 1889 e 1891, mandou queimar os arquivos da escravidão. A medida impediu que os escravocratas exigissem indenização pelos "prejuízos" que teriam sofrido com a Abolição —Ruy respondeu que o justo seria indenizar os escravos—, mas também privou o Brasil de conhecer mais a fundo uma parte fundamental de sua história.
Em 1º de abril de 1964, a Rádio Mayrink Veiga, do Rio, então controlada pelo governo que estava sendo deposto, teve tudo —arquivo, discoteca, até os equipamentos— jogado na rua pelos vitoriosos do momento. Nos anos 60 e 70, burocratas dos governos Costa e Silva e Médici, instalados num andar do prédio de A Noite onde ficava a memória da Rádio Nacional, deixaram material inestimável se perder.
Adalgisa Nery queimou as cartas de Murilo Mendes, apaixonado por ela. Na morte de Carmen Miranda, Mario Cunha, seu ex-namorado, queimou as cartas que ela mandara para ele. Na morte de Mario Cunha, Aurora, irmã de Carmen, queimou as cartas que ele mandara para ela. Gravar material novo, de áudio ou de vídeo, em fitas contendo material já gravado, apagando-o, era praxe das gravadoras e TVs brasileiras até os anos 80.
É o Brasil, notável pela desmemória, sempre apagando a si mesmo. Talvez por isso nunca aprenda.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
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