- Correio Braziliense
Existe uma política dos
cidadãos, que emergiu com força nas redes sociais e, no caso brasileiro, após
2013, protagonizada por movimentos cívicos e personalidades
A Globo confirmou: contratou Luciano Huck
para assumir um programa aos domingos, no lugar de Fausto Silva, que deixará a
emissora no final do ano, após mais de 32 anos de contrato. Com a decisão, foi
para a prateleira de possibilidades futuras, mas muito futuras mesmo, a
hipótese de o apresentador do Caldeirão concorrer ao cargo de presidente da
República. No programa Conversa com Bial, veio a confirmação do que já se sabia
nos bastidores. Na política, somente alguns entusiastas da candidatura do
apresentador ainda mantinham alguma esperança de que aceitasse o desafio
político. Entretanto, todas as pesquisas e o valor milionário do contrato com a
emissora desencorajaram essa opção.
No documentário 2021: O Ano Que Não
Começou, que é exibido na Globoplay, Huck revela o outro lado do seu talento
como homem de comunicação, ao entrevistar diversas personalidades e estudiosos
acerca do que será o mundo pós-pandemia, suas mudanças e os impactos que
atingirão a cada um de nós. É um desfile de gente importante para a sociedade:
Rutger Bregman, historiador e autor do best-seller Utopia Para Realistas;
Thomas Friedman, vencedor de três prêmios Pulitzer e colunista do jornal The
New York Times; Yuval Harari, professor de história e autor do best-seller
internacional Sapiens; e Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas
(CUFA).
Nesse período em que andou costeando o alambrado da política propriamente dita, como diria o falecido governador Leonel Brizola, Huck escreveu o livro De Porta em Porta, que está saindo do prelo. “Estou há 21 anos, literalmente, rodando o país inteiro por causa do Caldeirão do Huck e isso me colocou diante de uma realidade muito forte, que é a realidade deste país. A televisão me proporcionou conhecer o país de um jeito muito profundo”, expli- cou a Bial. Com certeza, o Huck de domingo será diferente daquele que conhecemos nas tardes de sábado. Não apenas por se tratar de outro público e outro conceito, mas porque o homem também mudou: “Pode parecer, nos meus programas, que eu estava impactando a vida das pessoas, mas eu posso garantir que o rio corre na direção oposta. O impactado fui eu, eu me transformei”, garante.
Esfera pública
Chegamos ao que mais interessa. Há
muito tempo a política deixou ser monopólio dos políticos, militares e
diplomatas. Recentemente, por exemplo, falamos aqui da importância da
burocracia como fiadora da legitimidade dos meios utilizados na política.
Numa ordem democrática, os burocratas de carreira zelam pela ética da
responsabilidade, em contraponto aos políticos, que se movem pela ética das
convicções. No âmbito da sociedade civil, também têm papéis fundamentais suas
organizações sociais, como as- sociações e sindicatos. Mas existe uma política
dos cidadãos, que emergiu com muita força em razão das redes sociais e, no caso
brasileiro, após 2013, foi protagonizada por movimentos cívicos, personalidades
e algumas celebridades.
A ideia da política como prisioneira do
mundo dos profissionais, impossibilitando, assim, sua valorização como
atividade de todos, é profundamente conservadora e nefasta para a democracia
brasileira, sendo irmã gêmea das tendências ideológicas que alimentam
radicalismos antissistema. Reforça uma característica da nossa história: a
hegemonia conservadora na conciliação pelo alto, que favorece as forças
retrógradas nos processos de modernização, concentrando riqueza e aprofundando
as desigualdades sociais.
O Brasil já perdeu muitas oportunidades. Do
ponto de vista político, a maior delas talvez seja não ter constituído uma
esfera pública robusta o suficiente para se contrapor ao Estado em seus
arreganhos autoritários, exceto nos processos eleitorais. De certa forma, a
esquerda no poder, ao cooptar as agências da sociedade civil, acabou
colaborando para isso. Agora, estamos diante de uma situação muito grave, em
que o presidente Jair Bolsonaro tenta impor suas ideias negacionistas e
autoritárias por meio dos instrumentos de Estado, em franca oposição à ordem
institucional democrática estabelecida pela Constituição de 1988.
É nesse contexto que metamorfose de Huck é importante. Ao flertar com a
política profissional e ensaiar a constituição de uma alternativa de poder,
adquiriu um status político diferenciado como profissional de comunicação, que
o transforma num ator muito importante na vida nacional, no papel de eloquente
porta-voz da política dos cidadãos.
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