- Valor Econômico
Experiência bem-sucedida de 2020 não foi
suficiente para amolecer ortodoxia brasileira
A pandemia perde força lá fora. Aqui, o
país está assustado com a possível chegada de uma terceira onda da covid-19.
Quem tem fé reza, e quem não tem torce para que ela não venha, sem poder
esperar por empenho efetivo da autoridade federal, que cometeu inúmeros
equívocos no enfrentamento da doença. Estimativas indicam que esses erros e
omissões tenham sido responsáveis por 70 mil das mais de 470 mil mortes.
A esta altura, rezando ou torcendo, aqueles
que lidam com economia já têm material para avaliações conclusivas sobre o
impacto real da pandemia na economia e o efeito das medidas emergenciais
adotadas em 2020.
Diferentemente de outros economistas
heterodoxos, que consideram a ação estatal fraca e inconsistente, o professor
Luiz Fernando de Paula, da UFRJ, sustenta que as iniciativas tomadas em 2020,
após pressões da sociedade, tiveram forte efeito contracíclico na economia.
Houve redução de pobreza e desigualdade, ainda que as autoridades tenham agido
sem estratégia coordenada.
No paper “A crise do coronavírus e as políticas contracíclicas no Brasil”, que circula nos meios acadêmicos, Fernando de Paula reúne dados para sustentar essa afirmação. A reação inicial do ministro da Economia, Paulo Guedes, foi lamentável, mantendo coerência com sua formação na velha Escola de Chicago e argumentando que as reformas seriam a melhor resposta à crise sanitária. Tomou medidas iniciais claramente insuficientes. Depois, acuado pelo Congresso, aceitou o auxílio emergencial e tomou outras medidas que totalizaram injeção de R$ 415 bilhões na economia. A maior parte, R$ 230 bilhões, foi aplicada no auxílio a pessoas vulneráveis (55%), seguido do auxílio a Estados e municípios (19%), à saúde pública (11%) e à manutenção do emprego e renda (8%).
O impacto inicial da pandemia foi
assustador. O nível de utilização da capacidade produtiva da indústria no país,
que já era baixo (menos de 80%), caiu para 65% em abril de 2020. Muitos
desempregados decidiram parar de procurar trabalho e, assim, a soma de
desocupados e desalentados atingiu 20% da população economicamente ativa.
O choque da atividade econômica
transmitiu-se para o sistema financeiro, com falta de liquidez, redução de
fontes de recursos externos, saques de linhas de crédito abertas e processos de
repactuação de operações de crédito.
Alguns dados mostram o efeito do auxílio
emergencial. A renda média efetiva dos 10% mais pobres do país teve aumento de
76%. No segundo décimo mais pobre, a alta foi de 32%, números que indicam um
forte impacto distributivo. Nos segmentos de renda mais alta, o ganho declina à
medida que a renda aumenta. Além da diminuição da desigualdade, houve redução
da pobreza, de 23,7% em maio de 2020 para 18,4% em agosto. Nesse período, a
pobreza extrema caiu de 4,18% para 2,29%
Citando Sanches et al (2021), Fernando de
Paula observa que, com gasto equivalente a 4,1% do PIB, o auxílio emergencial
foi responsável por evitar que a economia tivesse recessão de 8,4% a 14,8% no
ano passado (a queda foi de 4,1%). O consumo das famílias, sem o benefício,
poderia ter caído entre 11% e 14,7%, em vez de 6%.
Os efeitos dessas medidas e de outras que
evitaram o racionamento do crédito são hoje admitidos por ortodoxos e
heterodoxos e comemorados pelo mercado financeiro. O PIB cresceu 1,2% no
primeiro trimestre e a previsão de expansão em 2021 supera 4%.
Cloroquinas econômicas
O problema é que a experiência bem-sucedida
de 2020 não foi suficiente para amolecer a ortodoxia brasileira. Volta-se a
apostar nos remédios de austeridade e retração do Estado, cloroquinas
econômicas neste momento de contração. Acredita-se na tese da “fada da
confiança”, diz Fernando de Paula, segundo a qual as políticas liberais
destravam o espírito empresarial das amarras do Estado.
A agenda neoliberal, diz o economista, não
seguiu em frente em 2020, uma vez que o governo aumentou os gastos públicos e
isso atenuou a recessão. Abandonou-se a teoria de que o ajuste fiscal feito com
cortes de despesas públicas aumenta a confiança dos agentes, estimula os gastos
privados em consumo e investimento e, consequentemente, promove crescimento
econômico.
Agora, embora a pandemia continue, o
governo explicitamente retoma a agenda ortodoxa. Além de demorar para aprovar
um novo e insuficiente auxílio emergencial, enviou ao Congresso uma lista de
propostas prioritárias que confirmam a aposta nessa agenda liberal. Entre elas,
a autonomia do Banco Central (já aprovada); a nova Lei Cambial, que poderá
permitir a abertura do contas em dólar no país; a PEC Emergencial, que
restringe gastos públicos de União, Estados e municípios. E está mantida a fé
no teto de gastos.
A retomada neoliberal está em linha com a
estratégia que vinha sendo adotada no país antes da pandemia, que o economista
chama de “Thatcherismo Tupiniquim”. Segundo ele, porém, essa política diverge
daquela que vem sendo considerada necessária, mundo afora, para a recuperação
da crise, recomendada inclusive pelo FMI. Em seu “Fiscal Monitor”, o Fundo
pressupõe “lockdowns” nos momentos mais agudos da pandemia e vacinação, dois
pontos sabotados pelo governo. Um ponto central das recomendações é a
necessidade da expansão fiscal e do investimento público em países avançados e
emergentes. A sugestão é que os governos recorram também à emissão de dívida e
à tributação de ricos.
Em um primeiro momento, o foco sugerido é a
transferência de renda para os setores mais vulneráveis de pessoas e empresas.
Em seguida, propõe o Fundo, o investimento público deve dar prioridade à
melhoria da rede de saúde, à expansão da infraestrutura digital e à transição
para um modelo de desenvolvimento mais sustentável, tendo em vista o
aquecimento global e a proteção ambiental.
Está evidente, portanto, segundo Fernando
de Paula, o descompasso entre a estratégia do governo Bolsonaro para a
recuperação da crise e a dos demais países e instituições internacionais. A
tendência é que a tentativa de volta ao “velho normal”, com a agenda da
austeridade, represente entrave para a recuperação da atividade que se iniciou
com as medidas não ortodoxas do ano passado.
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