- O Globo
O Exército não puniu Pazuello. Qual a
surpresa? O governo é militar. Surpreendente seria se punisse o que lhe dá
dentes para intimidar inimigos. O governo é militar, e é Bolsonaro, indistinta
e personalissimamente, o que ladra. Surpreendente seria punir-se com a
banguelice.
O governo é militar e é daquele que ergueu
bem-sucedida empresa familiar nas bordas do Estado. O governo é militar e é de
patriotas como general Braga Netto, ministro da Defesa, cujo salário — sob
regra editada pelo mito — aumentou 58% e para mui além do teto remuneratório
constitucional. O governo é militar e é do capitão, o velho líder
corporativista fã de Hugo Chávez. Não cortará na própria carne — e isso não se
aplica somente a privilégios de contracheque.
O governo é militar. E o Exército está pazuellizado: submetido à dissolução de sua essência impessoal, degradada a natureza de instituição de Estado, a serviço incondicional do governante de turno e independentemente do que limita a Constituição. Um manda, o outro obedece — qualquer que seja a ordem, depauperado também, confundido com falta de vergonha, o senso de hierarquia. O governo é militar, e o Exército vai bem alimentado.
O governo é militar e a pazuellização do
Exército, fato consumado. Pazuello fez a aposta correta. Acreditou na
acomodação, em que nem sequer seria advertido, e saiu premiado, com cargo no
governo. Saiu mais que premiado, encarnando uma espécie de habeas corpus preventivo,
extensivo a todos os militares: pode tudo, rapaziada.
Pôde tudo, anos atrás, o vice Mourão:
general punido de mentirinha por discursos agitadores, deslocado — sob os
holofotes que lhe dariam existência pública — a uma função burocrática desde a
qual encontrou as condições ideais para sua escalada à política.
Não há mais fronteira entre Planalto e
Exército. No Ministério da Saúde ou sobre o palanque, Pazuello servia —
obedecia — a Bolsonaro, um chefe supremo das Forças Armadas cuja ascendência
sobre as tropas já não deriva da Carta, mas da lógica personalista que
fundamenta as relações entre o cabeça miliciano e seus homens.
O governo é militar. Militar e golpista. E
não chegou a 2021 sem que a estrada fosse pavimentada por badaladíssimos quatro
estrelas da moderação. Em 2018, o então comandante do Exército, dito moderado,
foi a uma rede social para emboscar o Supremo. Era o general Villas Bôas,
padrinho do Bolsonaro presidente e patrono da multiplicação dos generais Ramos
— aquele para quem Pazuello, general da ativa, subiu ao carro de som como
civil, aquele mesmo Ramos que, diante da série de atos antidemocráticos com a
presença do presidente, compareceu “só no da rampa”. (Ramos, outro fura-teto:
69% de aumento salarial.)
Foi de rampeiro em rampeiro que chegamos
até aqui. E não sem covardes. Os códigos militares são diretos: a participação do
ex-ministro general na manifestação bolsonarista infringiu as regras. O
Exército tinha a mais fácil desculpa para repreendê-lo: a clareza dos
estatutos. Optou, porém, pela submissão. Ou melhor: teria optado, se não
estivesse submisso havia muito. No último 27 de maio, o comandante da Força,
Paulo Sérgio Nogueira, aceitou viajar com Bolsonaro ao Amazonas para inaugurar
uma ponte erguida pela engenharia militar — isso à véspera de ter de decidir
sobre Pazuello. Lá, previsivelmente, ouviu o presidente declarar que “somos
todos seres políticos”, generais inclusive, e que caberia aos fardados decidir
“como o povo viverá”.
Fala-se que teria recebido diretamente de
Bolsonaro uma carga para que não penalizasse Pazuello. Não penalizou.
Na semana passada, circulou a versão de que
o comandante do Exército assim agira sob cálculo. Temeria que a punição
causasse um conflito entre a cúpula do Exército e o presidente; caso em que
haveria o risco de Bolsonaro lhe sustar a decisão, o que o obrigaria a
renunciar, abrindo terreno para que um bolsonarista chegasse ao comando. Uma
conta que não fecha, senão para fantasiar a existência de algum brio militar no
episódio. Ora! Desde quando Bolsonaro precisa de um bolsonarista — um explícito
— na liderança da Força para ter o Exército a seu absoluto dispor?
Está muito bom com Nogueira mesmo, cujo
caminho tomado — ainda que tivesse a intenção de evitar uma crise institucional
— resultaria, como resultou, em algo muito mais grave: na mensagem de vale-tudo
transmitida ao guarda da esquina.
Em português castiço: para o inferno o
eventual choque entre cúpula do Exército e Bolsonaro. Ao comandante, só caberia
aplicar o regulamento e disciplinar a tropa. Seu papel. Esse universo
corrompido em que o comando da Força tem de fazer ponderação política só existe
porque os generais escolheram se misturar, até a indistinção, ao governo de
turno.
Aí está. Para que os sócios — parceiros fiéis neste projeto autoritário de poder — não se estranhassem pontualmente por cima, difundiu-se um salvo-conduto imprevisível para baixo, um convite ao estado de amotinamento; o que representaria a superação desta etapa de pazuellização para o estabelecimento de um Exército afinal bolsonarizado, em que todo militar, de qualquer grau, estaria autorizado, estimulado, a se comportar como Bolsonaro quando na Força: malandro, desagregador, conspirador, com planos atentatórios. É o que ele quer. O Exército como milícia. Status em que — fica a dica — não seriam necessários generais.
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