- O Globo
Em mais um movimento que comprova como estamos regredindo como nação, mal conduzida em anos recentes e de maneira calamitosa desde o início do governo Bolsonaro, agora é o futebol que mobiliza o governo federal de maneira completamente equivocada. Nem mesmo o sucesso da seleção fará com que Bolsonaro saia vitorioso desse imbróglio, em que ainda por cima se viu envolvido com os escândalos da CBF. Qual almas gêmeas no que toca ao machismo regressivo, Rogério Caboclo, o presidente afastado da CBF por assédio moral e sexual contra uma funcionária, encontrou-se com o presidente Bolsonaro, um misógino, para arranjarem mais um problema para o país, a realização da Copa América em plena pandemia.
A disputa pela Copa América é uma demonstração de como o governo Bolsonaro é prejudicial ao país até nas coisas supérfluas. Nesse caso, porque retoma um hábito do governo militar, de interferência na seleção brasileira, de tê-la como símbolo político. A decisão de forçar a realização da Copa América no Brasil e a tentativa de mudar o técnico, tirando Tite, atacado nas redes sociais como comunista e petista, para colocar Renato Gaúcho, considerado bolsonarista, são erros graves, além de patéticos.
Renato é um grande técnico, poderia estar na seleção, mas não por esse critério
— acredito que nem ele aceitaria. Os jogadores e a comissão técnica, saberemos
hoje depois do jogo com o Paraguai, podem ter desistido de se recusar a
participar da Copa depois que Caboclo foi afastado, mas o incômodo já foi
revelado e constará de uma declaração conjunta.
Futebol não pode ser instrumento político de governo. Mesmo sendo “o país do
futebol”, os resultados das Copas do Mundo nunca influenciaram as eleições para
presidente da República, que, de quatro em quatro anos, coincidem com os
campeonatos desde 1994. Depois da redemocratização, não houve governo que não
quisesse se aproveitar das campanhas da seleção para ganhar popularidade.
Claro que, em 1994, ao receber a seleção tetracampeã do mundo com o presidente
Itamar Franco, o candidato governista, Fernando Henrique Cardoso, teve uma
vantagem momentânea ao carregar a taça. Mas, quatro anos depois, venceu a
reeleição presidencial no primeiro turno, apesar da derrota da seleção
nacional, demonstrando que foi o Plano Real, e não o futebol, que o colocou lá.
Em 2002, o pentacampeonato mundial não impediu que Lula vencesse a eleição
presidencial contra José Serra, o candidato do governo. A Copa do Mundo no
Brasil, em 2014, ao contrário, foi um momento de exposição negativa para o
governo Dilma, vaiada na inauguração na Arena Corinthians e na final no
Maracanã.
Durante a ditadura militar, governos tentaram interferir até mesmo na escalação
do time. A vontade do então presidente Médici de ter Dario na seleção de João
Saldanha é uma das versões que persistem sobre a Copa de 1970, que teve no
México uma atuação perfeita para trazer o tri sob o comando de Zagallo.
Desgastes diversos, com autoridades e jornalistas, e sua ligação com o Partido
Comunista Brasileiro levaram Saldanha a ter que deixar o comando da seleção.
Também é conhecida a tentativa, no governo Geisel, de convencer Pelé a voltar à
seleção em 1974, o que ele rejeitou sabiamente. Mas o ponto mais risível do
marketing político foi a tentativa petista de esvaziar a torcida pela seleção
brasileira na Copa do Mundo da Rússia em 2018, sob a alegação de que a camiseta
amarela fora usada pelos “coxinhas golpistas” nas manifestações a favor do
impeachment da ex-presidente Dilma.
Como se pudéssemos voltar no tempo, tentou-se reviver um sentimento que esteve
muito presente em 1970, em plena ditadura militar, quando muitos da esquerda
decidiram não torcer pelo time de Pelé, Tostão, Jairzinho e companhia. Segundo
o relato bem-humorado de vários exilados e membros da oposição, na hora “h” não
resistiram à paixão pelo futebol e comemoraram o tricampeonato mundial.
Em 2018, deu Bolsonaro, que usurpou o verde e amarelo para seu projeto
político. Recuperar as cores brasileiras como símbolo nacional, e não
partidário, é tarefa urgente.
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