Procuradores não são pagos para agir contra delinquentes
Já desisti de convencer os citadores sem lastro de que, em
"O Príncipe", Maquiavel não escreveu ou deu a entender que "os
fins justificam os meios". Apelo, então, à suavidade honestamente pueril
de outra obra: o Pequeno Príncipe jamais desistira de uma pergunta. E eu nunca
desisto de uma porfia. Volto, pois, aos embates entre a Lava Jato e Augusto Aras, procurador-geral da
República.
"Promover a realização da justiça, a bem da sociedade e em
defesa do Estado Democrático de Direito." Eis a missão do Ministério
Público Federal, segundo o que está escrito em seu site, sintetizando o que vai
na Constituição. Não! Procuradores não são pagos para agir contra delinquentes,
como quer certa... delinquência ignorante.
Essa até poderia ser a definição da função da polícia, mas ainda
carregaria certa carga de truculência protofascistoide. Ela existe para
proteger os cidadãos. E só por consequência atua contra os tais delinquentes.
De resto, uma das atribuições do Ministério Público é fazer o controle
externo da polícia, não excitar a sua discricionariedade. Não sei se
a estupidez é doce, mas é certamente saliente.
Não com o propósito de contestar o hálito fétido que emana das
catacumbas —posto que não há diálogo possível com os "walking dead"
verde-amarelos—, lembro, então, que os membros do Ministério Público têm o
dever de zelar também pelos direitos dos criminosos, distintos dos nossos. Se
aquele que se encontra sob a guarda do Estado é submetido ao vale-tudo, o que
pode acontecer a quem não se encontra?
Nada mais distante da ação de justiceiros do que o papel
reservado ao promotor e ao procurador. Há aí a diferença que distingue o
"Estado democrático e de Direito" (gosto com o conectivo
"e"), que aparece lá na página oficial do MPF, da barbárie miliciana.
Não há nenhuma evidência de que a abertura da caixa-preta da Lava Jato atenderia a
interesses de Jair Bolsonaro. Essa é só uma reserva de falso temor, simulada
por aqueles que exibem neutralidade na disputa entre a corda e o pescoço, numa
expressão desprezível de covardia.
Faço aqui um desafio: evidenciem, ainda que por hipóteses
plausíveis apenas, por quais caminhos a criação de uma Unidade Nacional de
Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), no âmbito do MPF, poderia
degenerar em uma polícia política.
Lembro que a Unac não eliminaria ou tisnaria nenhuma das
prerrogativas dos senhores procuradores, notadamente a inamovibilidade, a
vitaliciedade e a irredutibilidade dos salários. Tampouco criaria
circunstâncias que obrigariam um deles a desistir de uma investigação. O máximo
que pode acontecer, em benefício da institucionalização de procedimentos, é a
redução do espaço da arbitrariedade.
De resto, alinhar-se com o atual estado de coisas em nome do
risco de que a mudança poderia ser instrumentalizada pelo atual governo
corresponde a escolher a atuação degenerada da Lava Jato. Foi ela, em grande
medida, a catalisadora do reacionarismo que conduziu Bolsonaro à Presidência.
Permitiremos que, mais uma vez, ao arrepio da lei, essa máquina
de erigir e destruir reputações defina quem vai governar o país? Já conhecemos
as consequências. Vamos ao "é da coisa": o beneficiário direto dos
desmandos em voga é Sergio Moro. Sua pré-campanha à Presidência já está
em gestação nos subterrâneos das redes sociais.
E o mote é precisamente a "defesa da Lava Jato" como
sinônimo de combate à corrupção. Não é preciso fazer grande esforço
interpretativo para entender que, nessa perspectiva, a operação, mera fração de
um ente do Estado —o MPF—, resolve tomar o seu lugar.
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