sexta-feira, 7 de agosto de 2020

César Felício - 100 mil mortos

- Valor Econômico

Bolsonaro abdicou de liderança e passou a fatura

No limiar dos 100 mil óbitos da covid-19 e dos 3 milhões de casos da pandemia, que deve ser transposto no sábado, o Brasil vive a sua pior guerra, no sentido literal ou figurado, desde sua independência. A hecatombe atual guarda semelhança com episódios já muito distantes no tempo, como a gripe espanhola e a onda de fome que assolou o Nordeste na seca de 1877.

 

Um observatório para se contemplar a desgraça é o portal da transparência do registro civil, uma iniciativa dos cartórios. Segundo o portal, houve em 2020, no período entre 16 de março e 6 de agosto, um total de 507.097 óbitos por causas naturais. No mesmo período, em 2019, foram 474.287.

 

A razão evidente é a covid-19 e a Síndrome Respiratória Aguda Grave, responsáveis por uma em cada cinco mortes registradas no período - cerca de 90% da soma de 98.985 casos correspondem à doença provocada pelo coronavírus (88.298).


Ainda que quase a metade desta cifra seja compensada pela queda do número de anotações de causas mortis que podem ser atribuídas ao vírus, como septicemia e pneumonia - elas somaram 165 mil no período em 2019 e agora somam 119 mil- há alguma defasagem nos dados, o que sugere que a situação presente é algo mais grave do que aparece. Pela lei, o falecimento de uma pessoa precisa ser comunicado às autoridades em 24 horas e a lavratura do atestado de óbito deve ser feita em cinco dias. O envio do dado para a central nacional deve ser feito em mais oito dias. Com a pandemia, alguns Estados dilataram este prazo em até dois meses. Ou seja, esta fotografia é piso, e não teto. É incontroverso que está morrendo mais gente este ano do que em 2019.


A catástrofe no Brasil, à qual o mundo se curva em números absolutos, não é a pior do continente em termos proporcionais. É uma observação que pode refletir alguma condição excepcional do brasileiro ou apenas a debilidade dos nossos registros estatísticos, uma vez que é impossível atribuir o fenômeno à gerência governamental que está sendo feita em relação à crise. De acordo com o jornal chileno “La Tercera”, entre 1º de maio e 29 de julho uma em cada três mortes no Chile estava relacionada à covid-19, sendo que na região metropolitana de Santiago esta cifra subia à metade. Em magnitude de mortes, no entanto, os dois países se equivalem. A população chilena é dez vezes menor que a brasileira. Multiplicado por este fator, o número de óbitos lá é semelhante ao daqui.


Desde o início da crise, do ponto de vista político, o presidente Bolsonaro abdicou do papel de liderança no enfrentamento do vírus e busca transferir a fatura. A crise caiu no colo dos governadores a quem se cobra a responsabilidade pelas consequências econômicas das quarentenas e a quem se transforma as políticas emergenciais de compras para a saúde em casos de polícia, de maneira justificada ou não. O caso do secretário de Doria é mais um, é banal. Nesse contexto, Bolsonaro é apenas uma pessoa que sai atrás de uma ema com uma caixinha de cloroquina.


A pandemia deixará cicatrizes no Brasil, mas está sendo driblada pelo bolsonarismo. O presidente não está em situação absolutamente segura, pode perder a reeleição de 2022, pode até se inviabilizar no Congresso, mas nada disso deverá ter relação com a macabra contabilidade cotidiana da peste que assola o mundo.


O futuro

“Com a pandemia, o futuro saiu do circuito. Ninguém está olhando para frente”, observou em conversa com esta coluna o ex-deputado federal Saulo Queiroz, fundador do PSDB e do PSD, antigo hierarca do DEM, o que se convencionava chamar antigamente de uma velha raposa felpuda.

Queiroz refere-se a um problema para o qual o mundo partidário deve acordar no próximo ano. As coligações proporcionais estarão proibidas em 2022. O universo político está polarizada. É um erro tomar pelo valor presente o estrondoso fracasso dos organizadores do Aliança Pelo Brasil em coletar assinaturas para a criação da nova sigla. A hora decisiva será em 2021, em que os acólitos do presidente serão impulsionados pelo projeto de poder claro que significa a continuidade bolsonarista.


Do outro lado, o PT tem uma longa história de sobrevivência no isolamento, ganhando ou perdendo eleições. No meio do caminho estarão siglas como DEM, PSDB, Cidadania, PDT, PSB que, ou se aglutinam em torno de candidaturas viáveis, ou perecerão. Na janela partidária do começo de 2022, deputados de partido sem projeto de poder irão medir quem passa na peneira do voto sem coligação. Quantos deputados poderá eleger o DEM, concorrendo sem parceria? E o PCdoB? O furacão que passará pela janela partidária não será trivial.


No meio do vendaval o futuro presidente da Câmara, a ser eleito em fevereiro, será um ativo estratégico. O biênio final de uma legislatura costuma ser mais tenso que o inicial por se misturar com a sucessão no Palácio do Planalto.

Não é por acaso que a sucessão de Rodrigo Maia está em muito antecipada ao normal. “Já é o assunto do dia nos corredores”, diz um dos pretendentes ao cargo, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), para quem há o risco importante da disputa travar a agenda da Casa.


“A Câmara hoje está dividida em três terços: Bolsonaro, Rodrigo Maia e oposição. Impeachment está fora de cogitação e quem se une a um bloco derrota o outro”, diz Ramos. Como somente Maia pode se combinar tanto a um bloco como a outro, ele tende naturalmente a fazer seu sucessor.


Ramos não crê que um tema polêmico como a reforma tributária seja concluido na Câmara ainda antes da eleição de novembro, sobretudo se estiver vinculado com a nova proposta do governo de renda básica. Ainda assim, não subestima a capacidade de Maia de ditar o processo.


Sem candidato natural à presidência, os partidos de centro poderão ter no comando da Câmara dos Deputados uma reserva de poder, que poderá ser muito útil, inclusive, para mudar as regras da eleição de 2022. Há quem pense que a formação de uma nova sigla poderia aprumar o caminho. Queiroz tem pronta a minuta de uma consulta ao Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da norma que impediu que um novo partido possa receber uma fatia do fundo partidário equivalente ao total de deputados que ele consiga atrair.

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