Applebaum
aborda a crise das democracias liberais de forma complementar ao feito por
autores como Manuel Castells. Como discuti aqui há dois anos, Castells usa uma
abordagem mais marxista, falando da perda de legitimidade das elites políticas,
por conta do aumento da desigualdade de renda, dos escândalos de corrupção e da
percepção de captura das instituições pelas elites (glo.bo/33q0SpZ).
É como se as condições tivessem mudado e a decisão racional dos
cidadãos fosse questionar a democracia, por entender que essa não está mais
voltada a buscar o interesse do cidadão mediano.
Applebaum, por sua vez, foca no lado menos racional da
cidadania, nas emoções, nos vieses cognitivos. Mais ao ponto, seu foco é o
distanciamento entre a centro-direita, na qual se auto-situa, e a extrema
direita e, em especial, os intelectuais que dão apoio a governos de direita com
viés mais ou menos autoritário, vários dos quais eram amigos ou conhecidos da
autora. A passagem desses personagens, que Applebaum cita nominalmente, de
amigos para ex-amigos é usada por ela para caracterizar esse distanciamento,
ocorrido ao longo dos últimos 20 anos.
Para
Applebaum, a maior ameaça à democracia liberal vem do risco de mais países
mergulharem no autoritarismo, sob a influência de grupos de extrema direita (e
esquerda) que recorrem a dois instrumentos principais. Um é a moderna
tecnologia da informação, via redes sociais, que permitem identificar os temas
que interessam e preocupam cada eleitor, enviando a cada um mensagens sob
medida, feitas para dar medo e/ou raiva. Uma sensibilização que explora o
conhecimento desenvolvido nas últimas décadas em áreas como neurociência,
psicologia, marketing e Economia Comportamental. A Cambridge Analytics, ator
central no referendo do Brexit e na eleição de Trump, é um dos exemplos citados
nessa área.
O outro instrumento é a criação de narrativas, muitas vezes calcadas em fake
news. É aqui que entram os intelectuais. Ao criticá-los, Applebaum se ancora no
livro de Julien Benda, La Trahison des Clercs (em português, A Traição dos
Intelectuais, Ed. Peixoto Neto). Nesse livro, lançado em 1927, Benda critica
intelectuais que abraçaram ideologias totalitárias - comunismo, nazismo,
fascismo - e se alinharam a líderes autoritários, defensores de um nacionalismo
belicoso e excludente. Ao assim fazer, esses intelectuais contribuíram para
legitimar esses movimentos e seus líderes. Fizeram isso, então como agora,
argumenta Applebaum, por interesse financeiro, para se projetarem e por inveja
de outros mais bem sucedidos.
Para a
autora, a extrema direita sempre esteve lá, mas antes passava despercebida,
pois se aliava à centro-direita e ao centro no combate à União Soviética e ao
comunismo. A queda do Muro de Berlim acabou com essa aliança. Isso só não ficou
claro antes por conta dos ataques de 11 de Setembro e as guerras que vieram em
seguida.
O livro
foca em Polônia, Hungria, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos, apenas
resvalando no Brasil, quando fala do uso das novas tecnologias nas eleições de
2018. Porém, é fácil ver que muito da discussão se aplica ao Brasil, como o enfraquecimento
dos partidos tradicionais de centro, o uso de fake news, a tentativa de
enfraquecer as universidades, a imprensa, o legislativo e o judiciário.
Também por
aqui temos o que Applebaum chama de “whataboutism”, que segundo ela era uma
tática de retórica soviética que consistia em responder às críticas acusando o
interlocutor de hipocrisia. Um exemplo é a entrevista de Trump em que ele
elogia Putin e o entrevistador provoca: “Mas ele é um assassino”, e Trump
retruca: “Existem muitos assassinos. Você pensa que seu país é tão inocente?”.
Entre nós, vejo isso no “Edaísmo”, as respostas com o “E daí?”.
O livro analisa, denuncia, mas não oferece remédios. Ele encerra em tom
esperançoso, falando do sentimento pan-europeu dos jovens da região. Parece incongruente
com a análise feita antes. Do meu lado, saí acreditando mais na reeleição de
Trump e mais preocupado com a moldura intelectual dada à nova ordem mundial.
Esta me
pareceu a principal ausência do livro, que, apesar de bem atual, a ponto de
falar da pandemia da covid, não cita o conflito EUA x China. A autora entende
que o fim da aliança entre centro e extrema-direita enfraquece a democracia
liberal e, portanto, é mais um elemento que contribui para por um fim à ordem
mundial iniciada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Mas, e o que vem
depois? Me pergunto, por exemplo, se a nova guerra fria será conduzida para
restabelecer a aliança à direita, como parece estar sendo, e Applebaum parece
desejar, e o que isso trará para países como o Brasil. Afinal, na guerra fria
do século XX, a defesa da democracia nas potências centrais por vezes
justificou o apoio a regimes autocráticos no mundo em desenvolvimento. E os
quase cem anos que vão do caso Dreyfus à queda do Muro foram muito divisivos e
violentos também por aqui.
*Armando Castelar Pinheiro é
Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do
IE/UFRJ
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