O Estado de S. Paulo
A maioria dos brasileiros que estão hoje nos presídios não dispôs de uma defesa adequada. Isso é o que deve nos escandalizar
Surpreendeu-me a reação de deboche de parte
do campo progressista com o equívoco de um advogado durante o segundo
julgamento do 8 de Janeiro, confundindo O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, com O
Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry.
A esta altura, é mais do que evidente que os
processos do 8 de Janeiro não têm nada de excepcionais quanto ao comportamento
da Justiça. Ainda que possuam características próprias, eles são reflexo
fidedigno do modo como o sistema penal funciona habitualmente. Inquéritos com
investigação insuficiente, prisões preventivas mal fundamentadas, denúncias
genéricas, defesas tecnicamente deficientes e sentenças desproporcionalmente
pesadas não são exceções no dia a dia da Justiça.
É uma realidade conhecida há séculos – denunciada por nomes como Cesare Beccaria (1738-1794), Georg Rusche (1900-1950) e Otto Kirchheimer (1905-1965) –, mas fingimos não vê-la. Além de violar direitos, o sistema penal não cumpre suas funções declaradas. Ele é radicalmente perverso com o réu. Mesmo quando o caso – eis a triste constatação – é julgado pela mais alta Corte do País.
A batalha pelo efetivo direito de defesa não
é, portanto, tema acessório. Mais do que ao deboche, o erro do advogado deve
nos levar a refletir sobre a qualidade da defesa exercida habitualmente nos
processos penais no Brasil.
É de justiça reconhecer o excelente trabalho
da Defensoria Pública, que atua com abnegação, competência técnica e grande
sentido prático, em condições muitas vezes adversas. Em suas várias esferas, a
Defensoria Pública é motivo de orgulho. Sua tarefa, verdadeiramente hercúlea, é
concretização cotidiana do Estado Democrático de Direito.
Mas isso não impede de constatar os muitos
casos, muitíssimos casos, assistidos por advogados despreparados, em que não há
uma defesa tecnicamente adequada. Se os julgamentos fossem transmitidos pela
televisão, eles também seriam ocasião de deboche e ridicularização. Mas nada
disso é motivo de deboche ou ridicularização. Há, diante dos nossos olhos, um
abismo de cidadania. É preciso reconhecer a absoluta insuficiência da defesa de
muitos réus. Não se pode fugir dos fatos: a grande maioria dos brasileiros que
estão hoje nos presídios não dispôs de uma defesa adequada.
O Brasil tem a terceira maior população
carcerária do mundo, mas grande parte dessas pessoas teve uma defesa frágil e
deficiente, tal como a dos primeiros julgamentos do 8 de Janeiro. Isso é o que
deve nos escandalizar. Não ignoremos os direitos das pessoas. Não tratemos os
adversários políticos – quem está em campo ideológico diferente do nosso – como
cidadãos de segunda categoria, detentores de menos direitos.
Somos míopes se vemos na falha do advogado
uma questão a ser ridicularizada. Estamos em 2023 e ainda não aprendemos nada
com o histórico do sistema penal. Continuamos achando que ele é capaz de
resolver os problemas nacionais. O fetiche da prisão continua reinando
absoluto, em todas as cores ideológicas.
Precisamos de um novo marco de cidadania, de
um novo patamar de respeito aos direitos, de um novo compromisso com o direito
de defesa. Gostemos ou não dos réus. Partilhemos ou não de suas ideias
políticas.
Não é possível que continuemos prendendo
pessoas submetidas a defesas desqualificadas. Isso não é um reality show. Isso
não é uma sessão de stand-up. São pessoas. São vidas. E está em jogo a
efetividade de nossa democracia.
Por que prendemos tanto e continuamos com
índices altíssimos de criminalidade? Por que condenamos massivamente por
tráfico de drogas – sem investigação, só em função do porte e da raça –, e os
problemas não diminuem? Continuaremos rindo das pessoas sem acesso a advogados
minimamente qualificados? É essa a nossa resposta aos ataques antidemocráticos?
Debochando da defesa tecnicamente mal feita?
É tempo de um novo olhar, de uma nova
sensibilidade, de uma nova compreensão. Ou seguiremos enredados nas mesmas
disputas absurdas, nos mesmos círculos viciosos, no mesmo sistema que tortura e
mata – mas de que reclamamos só quando atinge nossos amigos. A Operação Escudo,
a mais letal depois do massacre do Carandiru, segue sendo aplaudida e
justificada.
Repetida pelos ministros do Supremo nos
julgamentos do 8 de Janeiro, a retórica a respeito da gravidade dos crimes
julgados é exatamente a mesma que se ouve todos os dias nos tribunais do País,
para limitar o alcance da presunção de inocência. Para ridicularizar o réu.
Para constranger as testemunhas de defesa. Para tornar menos escandalosa –
menos visível – a aplicação de penas disfuncionais e desproporcionais.
Em vez de despertar nossa arrogância – sobre
isso, confira o artigo Arrogantes príncipes principiantes, de Eugênio Bucci
(Estadão, 21/9/2023) –, o erro do advogado deve ser ocasião de repensar a
qualidade e o currículo dos cursos jurídicos. Há muito a ser feito.
O 8 de Janeiro foi um evento único. Mas é
também matéria corrente da vida nacional. Como nos lembrou o deboche com o
advogado, o respeito ao regime democrático – e aos direitos a ele inerentes – é
ainda uma grande utopia.
*ADVOGADO CRIMINAL
Nenhum comentário:
Postar um comentário