- Folha de S. Paulo
Moro começa a olhar para nossa ‘melancólica humanidade’ com olhos estranhos
O juiz Sergio Moro nem é um salafrário, como gritaram esquerdistas brasileiros em Nova York, nem é um “Ramphastos dorius” —tucano da espécie Doria— só porque se deixou fotografar ao lado do candidato do PSDB ao governo de São Paulo e participou naquela cidade de um evento, entre outros, do Lide, o grupo de empresários liderado pelo ex-prefeito. Mas a questão está longe de ser “uma bobagem”, como ele classificou as críticas que lhe foram dirigidas.
Não é normal, decoroso ou corriqueiro que o juiz que encarna, em terras nativas, a punição aos corruptos, numa operação que acumula acertos, mas também uma penca de erros, desfile mundo afora o seu charme de caçador de corruptos.
Só neste ano, é sua terceira viagem aos EUA. Oh, não! Não acho que ele seja um agente da CIA. Acho apenas que ele se torna um agente político quando participa de encontros organizados por bancos, associações empresariais e afins. E, como é sabido, políticos disputam votos, não envergam togas. Podem ser presos, mas não mandam prender.
Tal exposição não é ilegal, mas é indecorosa. Moro demonstra ainda, como é próprio de uma personalidade que começa a fazer parte do “jet set”, o particular senso de humor da mundanidade.
Segundo reportagem desta Folha, ao discursar no evento do Lide, fez graça: “Tinha uma gravata vermelha e uma gravata azul. Isso pode ter diferentes sentidos. A vermelha poderia significar Partido Republicano ou Partido dos Trabalhadores. A azul poderia ser o PSDB ou até o Partido Democrata.”
Acabou indo com a vermelha. Não sendo petista, será ele um republicano?
O homem se entrega, em terras estrangeiras, a uma ligeireza de espírito incompatível com os efeitos de seu trabalho no Brasil, no que este tem de virtuoso e de vicioso. Ele mesmo, ao arranhar um Terêncio (“Sou homem, e nada do que é humano é estranho a mim”), concluiu: “Somos todos seres humanos, com nossas virtudes e nossas falhas, e a corrupção pode afetar alguém de qualquer espectro político”.
Opa! Corrijo-me: Moro estava falando dos humanos, não de si mesmo.
O juiz começa a olhar para a nossa “melancólica humanidade” com olhos estranhos. Parece flanar acima das disputas terrenas entre o bem e o mal, o certo e o equívoco, o vermelho e o azul. A rigor, só ele poderia envergar qualquer gravata e transitar em qualquer ambiente sem se deixar tocar ou contaminar.
Nas suas sentenças, no entanto, ninguém tem direito à inocência. Se falta a prova, ele a substitui por uma versão, digamos, rupestre da teoria do domínio do fato: “Estava em festa de tucano? Então é tucano; não tinha como não saber...” Na sua vida privada —que, como se vê, é uma derivação de sua atuação pública—, inexistem a culpa e a suspeita, imunidade prévia que se estende a compadres.
Sou um homem inatual. Resgato na palavra “justiça” a raiz “jus, juris”, que quer dizer “neutralidade”, “equilíbrio”. Por isso a balança... Caminhando um tanto para trás, a palavra remete ao sagrado. A Justiça é necessariamente frugal.
Cobro mais compostura de um juiz. De qualquer um. Mais ainda de quem mandou para a cadeia um ex-presidente da República e que comanda uma operação que responde pelo transe político que vive o país, de desdobramento incerto.
Notem: mesmo que houvesse inocentado Lula, essa performance seria incompatível com a função. Diz ele que participa de convescotes empresariais porque, afinal, a corrupção também está no mundo privado. Conversa mole. Ele não estava lá para conferir uma aula magna, dar um puxão de orelha ou fazer advertência. Participava de regabofes.
O lugar de um juiz, recorrerei a uma palavra bilaquiana (sou inatual), é no claustro, rezando os textos legais e tomando decisões que honrem o que está escrito, lembrando-se sempre de que é homem, também ele —e não só os seus réus—, e de que nada do que é humano lhe é estranho. Nem mesmo a vaidade irresponsável.
Sei o que me custa um texto assim. Fazer o quê? O caminho do smoking e do champanhe, enquanto o país fica entre o tédio e o abismo, seria certamente mais fácil também para mim. Mas não o mais moral.
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