O ressentimento social volta a ser
capitalizado por discursos de ódio, por soluções fáceis para problemas
complexos, por um nacionalismo excludente que aponta inimigos internos e
externos a serem eliminados. A democracia liberal, cansada e desacreditada,
assiste à sua própria erosão sem força para reagir, enquanto o mundo desliza,
sorrateiro, rumo a um novo precipício histórico.
Nas décadas de 1920 e 1930, o mundo viu emergir líderes como Benito Mussolini, Adolf Hitler, Antonio de Oliveira Salazar, Francisco Franco e outros que se aproveitaram do medo coletivo, das crises econômicas profundas e de um ressentimento nacionalista exacerbado. Hoje, assistimos a fenômenos muito similares com Viktor Orbán na Hungria, Recep Tayyip Erdoğan na Turquia, Narendra Modi na Índia, Javier Milei na Argentina, Benjamin Netanyahu em Israel, Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil, entre outros.
Mesmo em contextos distintos, reproduzem uma
cartilha conhecida: minam o judiciário, deslegitimam a imprensa, estimulam o
ódio a minorias, exaltam soluções autoritárias e simplistas, alimentam uma
nostalgia idealizada de um passado que nunca existiu. Esse padrão evidencia que
o autoritarismo não é um acidente histórico, mas um risco recorrente quando
instituições democráticas são enfraquecidas e o medo coletivo se torna
combustível para líderes messiânicos e projetos regressivos de poder.
Essa nova onda autoritária, disfarçada de
"vontade popular", não é episódica, é um fenômeno sistêmico nascido
das inúmeras crises vivenciadas pelo capitalismo. As democracias liberais estão
corroídas por dentro, o descrédito nas instituições, a captura das políticas
públicas por interesses corporativos e a sensação difusa de que "a
política não serve mais" criam um vácuo ocupado pelos populismos e a
antipolítica se tornou capital político e a negação dela um instrumento da
extrema-direita.
O centro político, que outrora funcionava
como moderador entre extremos, esvaziou-se, a República de Weimar, precursora
da ascensão do nazismo, também padeceu da ausência de forças moderadas capazes
de sustentar um pacto democrático. A fragmentação atual da esquerda, ainda com
vários dos sintomas do fim da União Soviética, além do esgarçamento da
social-democracia global, contribui indiretamente para tudo isso, assim como o
crescimento da extrema-direita mundial, agora mais articulada, porém sob os
mesmos signos do passado, nacionalismo, armamentismo, negação do diverso e
fortemente alicerçado nas teologias.
As redes sociais aceleram esse processo, se Goebbels compreendia o poder de uma mentira repetida mil vezes, hoje os algoritmos potencializam isso em escala exponencial. Fake news, deepfakes, discursos de ódio e teorias da conspiração circulam com uma velocidade incomensurável, criando realidades paralelas, a verdade tornou-se relativa. A confiança no conhecimento científico, na imprensa livre, nas universidades e nas instituições caiu drasticamente, o chão da razão foi minado e o fato real não importa mais, apenas as narrativas desses fatos.
Em paralelo, a desigualdade atinge níveis obscenos, o relatório da Oxfam de 2024 apontava que as cinco pessoas mais ricas do mundo dobraram suas fortunas desde a pandemia, enquanto bilhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar e falta de acesso à saúde básica. A crise de 1929, que devastou as economias capitalistas e criou uma legião de desempregados, é um espelho sombrio desse presente, a humilhação econômica, ontem como hoje, é fértil para o ódio, para o nacionalismo tóxico, para as crenças messiânicas e para a ascensão do extremismo nos moldes do século passado
A fragmentação social, o hiperindividualismo
promovido pelo neoliberalismo e o culto ao empreendedorismo como a nova solução
mágica para a miséria desestruturaram o tecido coletivo e criam uma cunha na
base da sociedade que não se unifica e ainda com parcela dos deserdados
defendendo quem os mantém na vida miserável que levam. O Estado e a democracia
foram demonizados e a lógica do “cada um por si” tornou-se o mantra dominante.
Não à toa, ideias de supremacia racial, xenofobia, misoginia e lgbtfobia retornam
com força, como se nunca tivessem sido derrotadas. O ressentimento de quem se
sente “prejudicado” pela inclusão do outro é manipulado com precisão cirúrgica
pelos neofascistas.
As guerras atuais também ecoam os ensaios
trágicos do passado: a invasão da Ucrânia pela Rússia, o massacre em Gaza, os
conflitos étnicos na Etiópia, Sudão e Congo, as tensões entre Índia e
Paquistão, os Estados Unidos com a retórica de anexar o Canadá e a Groenlândia,
além de ameaçar tomar o canal do Panamá: tudo aponta para um cenário de
instabilidade crônica, onde alianças frágeis e nacionalismos armados podem
facilmente escalar para confrontos maiores. O clima de pré-guerra está no ar, e
a comunidade internacional, como a antiga Liga das Nações, aparentemente pouco
faz ou não demonstra a força necessária para estancar a escalada belicosa e
agora armamentista, que arrastou agora até mesmo a Europa.
Além disso, o mundo vive uma nova crise de
refugiados, causada não apenas por guerras, mas também pelo colapso climático e
pela pobreza estrutural. Milhões de pessoas são forçadas a abandonar seus
lares, mas enfrentam fronteiras fechadas, políticas de rejeição e discursos que
os tratam como “ameaça civilizacional”. Nos anos 1930, países como os Estados
Unidos, o Reino Unido, França, México e o Brasil recusaram judeus em fuga do
nazismo. Hoje, corpos boiam no Mediterrâneo, crianças são separadas de pais na
fronteira estadunidense e tudo isso se normalizou de forma escandalosa.
As instituições multilaterais mostram-se tão
frágeis quanto a ONU está paralisada, refém de vetos no Conselho de Segurança e
da geopolítica das grandes potências. Os tratados de paz, meio ambiente e
direitos humanos são ignorados sem consequências. O Acordo de Paris claudica,
enquanto corporações continuam explorando recursos com voracidade
insustentável, enquanto isso o Sul Global paga a conta ambiental de um modelo
que nunca construiu e nem aproveitou.
No campo simbólico, a banalização do mal,
conceito cunhado pela judia Hannah Arendt para explicar como pessoas comuns se
tornam cúmplices de crimes abjetos em nome da obediência, volta a ser cada vez
mais atual. Hoje, soldados bombardeiam civis com drones como se jogassem
videogames. Funcionários em escritórios elaboram algoritmos que excluem
populações inteiras de serviços públicos, o horror é terceirizado,
automatizado, e normalizado. A frieza burocrática da máquina estatal é
revestida por eufemismos: "colateral", "operação de
pacificação", "ajuste fiscal", "intervenção técnica".
Por trás dessas palavras, vidas são esmagadas, direitos são diluídos e a
empatia é substituída por relatórios e gráficos, é a ética anestesiada pela
rotina, o crime tornado rotina, a justiça substituída por uma pretensa
eficiência.
Mas nem tudo está perdido, nosso século
também nos oferece ferramentas que inexistiam no passado, temos redes de
solidariedade internacional, movimentos sociais articulados globalmente,
juventudes politizadas, tecnologias livres que podem ser usadas para construir
alternativas. A luta antirracista, feminista, ambiental e anticapitalista
floresce em todos os continentes. A memória histórica pode e deve ser um
antídoto, e ela está sendo resgatada por educadores, artistas, ativistas e
acadêmicos.
A crise atual, se trabalhada, pode virar uma
oportunidade, como descreveu Walter Benjamin, outro judeu que vivenciou a
ascensão do nazifascismo: “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de
exceção’ em que vivemos é a regra”. Cabe a nós interromper esse ciclo. A
democracia, a justiça social, os direitos humanos e o planeta não serão
preservados por inércia.
É preciso um desejo coletivo, com organização
e coragem política, e o urgente renascimento do movimento socialista
internacional, esse é um elemento fundamental para barrar a onda fascista, exatamente
como ocorreu no século passado, mas a luta contra o autoritarismo começa no
cotidiano: na escola, na vizinhança, no trabalho, na internet, na igreja, onde
cada um de nós esteja.
A história não apenas rima, ela cobra caro
quando ignorada. Caminhamos hoje sobre os escombros mal varridos do século XX,
repetindo padrões que acreditávamos superados. O autoritarismo já não bate à
porta, ele senta-se à mesa, veste terno, discursa em palanques e governa sob
aplausos dos incautos. O colapso do centro político, o descrédito das
instituições e o avanço de discursos de ódio não são fenômenos espontâneos, são
sintomas de uma democracia adoecida e de uma memória histórica maltratada.
Persistir na ilusão de que “dessa vez será
diferente” é um risco que a humanidade já não pode se dar ao luxo de correr. O
antídoto está na reconstrução da vida democrática como experiência coletiva:
fortalecendo instituições, combatendo a desigualdade que alimenta o
ressentimento e, sobretudo, ensinando história não como uma sucessão de datas,
mas como um alerta permanente.
Se não aprendermos com o passado, ele deixará
de ser apenas uma sombra incômoda, e voltará a ser nossa prisão, para muitos
literalmente. O futuro ainda é um campo aberto, mas só permanecerá livre se
tivermos coragem de confrontar os fantasmas que insistem em retornar com novas
máscaras.
*Cláudio Carraly, advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.
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