Valor Econômico
Até que a nova ordem se estabeleça, o mundo
deve atravessar um período de flutuação, turbulência, instabilidade e
imprevisibilidade até a segunda metade do século XXI
A pergunta do título ao lado se justifica
porque tudo parece de ponta-cabeça. Os neoliberais estão virando nacionalistas
e protecionistas. Os socialistas/comunistas se mostram liberais e defensores do
livre mercado, pelo menos na retórica. E o ódio aos imigrantes se espalha.
A resposta de um respeitado sociólogo
brasileiro, José Luís Fiori, professor emérito da UFRJ, é objetiva: vivemos um
momento de “desordem global”, de caos e incerteza sobre o futuro, porque uma
era acabou e será preciso construir uma nova ordem.
Fiori, que ministra um curso de extensão sobre A Geopolítica do Século XXI na FESPSP, observa que os principais chefes de Estado do mundo, antes e depois da posse de Donald Trump, têm sido claros sobre o fim dessa ordem mundial. Cita Josep Borrell, ex-vice-presidente da Comissão Europeia, que afirmou com todas as letras: “A supremacia ocidental terminou”.
Não se trata de inocentar Donald Trump de
suas trapalhadas e da hiperatividade ultradireitista e até fascista. Mas não
foi ele quem provocou essa mudança. A estúpida guerra tarifária e outras
iniciativas dele apenas aumentaram o sentimento de desordem, explica Fiori.
O que ocorre no mundo, portanto, é uma
disputa por supremacia e poder na nova ordem mundial em formação. Para
facilitar o raciocínio, José Luís Fiori elenca alguns acontecimentos
emblemáticos do pós-2020, não necessariamente em ordem cronológica, responsáveis
pela implosão da ordem global neoliberal constituída a partir do fim dos anos
1970 e dos resquícios daquela estabelecida no pós-Guerra com instituições
internacionais, como a ONU.
O primeiro acontecimento emblemático se deu
na pandemia da covid-19, por conta de suas consequências, não apenas pelas
mortes de 7 milhões de pessoas, mas também por razões geopolíticas. Seu efeito
foi altamente corrosivo para o discurso da globalização. Toda a retórica
neoliberal dos desafios comuns e da solidariedade global foi água abaixo com o
egocentrismo revelado pelas nações mais ricas quando bilhões de pessoas se
refugiavam em casa, assombradas com o risco de morte. Para os países pobres,
Brasil incluído, faltaram UTIs, respiradores e até simples máscaras.
O segundo acontecimento foi a retirada
humilhante das tropas dos EUA do Afeganistão, concluída em 2021, depois de 20
anos de bombardeios massivos determinados por vários presidentes, inclusive
Barak Obama (foi o que mais bombardeou). A nação dominante saiu derrotada por
um povo tido como desqualificado pelo poderio americano.
O terceiro foi e continua sendo o massacre
dos palestinos em Gaza, promovido por Israel, com transmissão ao vivo, na
interminável represália ao covarde ataque terrorista do Hamas. Quem acreditava
haver algum instrumento global para parar o morticínio descobriu que isso não
existe. As instituições multilaterais, inclusive a ONU, foram desmoralizadas. E
a explosão de crueldade cumpriu e cumpre um papel importante na erosão
definitiva da moralidade do Ocidente.
O quarto foi a guerra na Ucrânia. O fato de
os russos entrarem na Ucrânia sem “dar bola” ao poderio militar do Ocidente
indica que a Rússia já ganhou essa guerra. A vitória foi militar e econômica.
As 30 mil sanções econômicas aplicadas contra o país agressor não aleijaram a
Rússia, que continua a crescer, mas atingiram a Europa, principalmente pela
redução do fornecimento de petróleo e gás.
A Rússia resistiu às sanções americanas e
europeias, redesenhou seu modelo de produção nacional e sua estratégia
econômica de inserção internacional e voltou a crescer. Enquanto isso, as
economias europeias entraram em processo de desaceleração e estagnação. Agora,
para fazer a paz, os russos não querem apenas ficar com a Crimeia e outros
territórios conquistados: querem discutir a nova ordem global. E o afastamento
econômico da Rússia com relação à União Europeia e aos grupos do G7 representa
“um passo irreversível da economia russa na direção do continente asiático,
firmando o bloco eurasiano como epicentro econômico do sistema capitalista
mundial”.
Steven Levitsky, laureado autor do livro
“Como as democracias morrem”, disse ao jornalista Marcos de Moura e Souza,
do Valor, que
lhe “tira o sono” o fato de Trump estar ajudando a destruir a ordem
internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial. Para o bem ou para o
mal, observou Levitsky, os EUA eram os líderes do Ocidente liberal democrático
e os principais líderes militares e econômicos do conjunto de países do mundo
que chamamos de democracias liberais.
Para onde, então, está caminhando a nova
ordem mundial? Analistas costumam afirmar que o sistema está transitando de uma
ordem unipolar e globalizada para a multipolar e desglobalizada. Fiori acha que
essa “transição” não está clara. De um lado, vê as grandes potências ocidentais
que não se dispõem a renunciar à supremacia mundial que exerceram nos últimos
300 anos. De outro, as novas potências regionais que pedem passagem. Nenhum
desses países ou conjuntos de países tem hoje capacidade de impor sua vontade
sobre o resto do mundo.
O novo clube das grandes potências, segundo
Fiori, certamente incluirá, pelo menos, EUA, China, Rússia, Índia e União
Europeia (modificada, militarizada e liderada pela Alemanha). E não seria
impossível - isso é assustador - imaginar um pacto entre EUA e China, com o
surgimento de um “superimperialismo”. E com um detalhe: a nova corrida
armamentista dessas potências, todas nucleares, já se dá não apenas na terra,
mas no espaço sideral, observa o professor Daniel Barreiros, da UFRJ em aula na
FESPSP.
De qualquer forma, até que a nova ordem se
estabeleça, prevê Fiori, o mundo deve atravessar um período de flutuação,
turbulência, instabilidade e imprevisibilidade até a segunda metade do século
XXI. Boa sorte, gerações Alpha e Beta.
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