terça-feira, 27 de maio de 2025

Está chegando ao fim a supremacia ocidental? - Pedro Cafardo

Valor Econômico

Até que a nova ordem se estabeleça, o mundo deve atravessar um período de flutuação, turbulência, instabilidade e imprevisibilidade até a segunda metade do século XXI

A pergunta do título ao lado se justifica porque tudo parece de ponta-cabeça. Os neoliberais estão virando nacionalistas e protecionistas. Os socialistas/comunistas se mostram liberais e defensores do livre mercado, pelo menos na retórica. E o ódio aos imigrantes se espalha.

A resposta de um respeitado sociólogo brasileiro, José Luís Fiori, professor emérito da UFRJ, é objetiva: vivemos um momento de “desordem global”, de caos e incerteza sobre o futuro, porque uma era acabou e será preciso construir uma nova ordem.

Fiori, que ministra um curso de extensão sobre A Geopolítica do Século XXI na FESPSP, observa que os principais chefes de Estado do mundo, antes e depois da posse de Donald Trump, têm sido claros sobre o fim dessa ordem mundial. Cita Josep Borrell, ex-vice-presidente da Comissão Europeia, que afirmou com todas as letras: “A supremacia ocidental terminou”.

Não se trata de inocentar Donald Trump de suas trapalhadas e da hiperatividade ultradireitista e até fascista. Mas não foi ele quem provocou essa mudança. A estúpida guerra tarifária e outras iniciativas dele apenas aumentaram o sentimento de desordem, explica Fiori.

O que ocorre no mundo, portanto, é uma disputa por supremacia e poder na nova ordem mundial em formação. Para facilitar o raciocínio, José Luís Fiori elenca alguns acontecimentos emblemáticos do pós-2020, não necessariamente em ordem cronológica, responsáveis pela implosão da ordem global neoliberal constituída a partir do fim dos anos 1970 e dos resquícios daquela estabelecida no pós-Guerra com instituições internacionais, como a ONU.

O primeiro acontecimento emblemático se deu na pandemia da covid-19, por conta de suas consequências, não apenas pelas mortes de 7 milhões de pessoas, mas também por razões geopolíticas. Seu efeito foi altamente corrosivo para o discurso da globalização. Toda a retórica neoliberal dos desafios comuns e da solidariedade global foi água abaixo com o egocentrismo revelado pelas nações mais ricas quando bilhões de pessoas se refugiavam em casa, assombradas com o risco de morte. Para os países pobres, Brasil incluído, faltaram UTIs, respiradores e até simples máscaras.

O segundo acontecimento foi a retirada humilhante das tropas dos EUA do Afeganistão, concluída em 2021, depois de 20 anos de bombardeios massivos determinados por vários presidentes, inclusive Barak Obama (foi o que mais bombardeou). A nação dominante saiu derrotada por um povo tido como desqualificado pelo poderio americano.

O terceiro foi e continua sendo o massacre dos palestinos em Gaza, promovido por Israel, com transmissão ao vivo, na interminável represália ao covarde ataque terrorista do Hamas. Quem acreditava haver algum instrumento global para parar o morticínio descobriu que isso não existe. As instituições multilaterais, inclusive a ONU, foram desmoralizadas. E a explosão de crueldade cumpriu e cumpre um papel importante na erosão definitiva da moralidade do Ocidente.

O quarto foi a guerra na Ucrânia. O fato de os russos entrarem na Ucrânia sem “dar bola” ao poderio militar do Ocidente indica que a Rússia já ganhou essa guerra. A vitória foi militar e econômica. As 30 mil sanções econômicas aplicadas contra o país agressor não aleijaram a Rússia, que continua a crescer, mas atingiram a Europa, principalmente pela redução do fornecimento de petróleo e gás.

A Rússia resistiu às sanções americanas e europeias, redesenhou seu modelo de produção nacional e sua estratégia econômica de inserção internacional e voltou a crescer. Enquanto isso, as economias europeias entraram em processo de desaceleração e estagnação. Agora, para fazer a paz, os russos não querem apenas ficar com a Crimeia e outros territórios conquistados: querem discutir a nova ordem global. E o afastamento econômico da Rússia com relação à União Europeia e aos grupos do G7 representa “um passo irreversível da economia russa na direção do continente asiático, firmando o bloco eurasiano como epicentro econômico do sistema capitalista mundial”.

Steven Levitsky, laureado autor do livro “Como as democracias morrem”, disse ao jornalista Marcos de Moura e Souza, do Valor, que lhe “tira o sono” o fato de Trump estar ajudando a destruir a ordem internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial. Para o bem ou para o mal, observou Levitsky, os EUA eram os líderes do Ocidente liberal democrático e os principais líderes militares e econômicos do conjunto de países do mundo que chamamos de democracias liberais.

Para onde, então, está caminhando a nova ordem mundial? Analistas costumam afirmar que o sistema está transitando de uma ordem unipolar e globalizada para a multipolar e desglobalizada. Fiori acha que essa “transição” não está clara. De um lado, vê as grandes potências ocidentais que não se dispõem a renunciar à supremacia mundial que exerceram nos últimos 300 anos. De outro, as novas potências regionais que pedem passagem. Nenhum desses países ou conjuntos de países tem hoje capacidade de impor sua vontade sobre o resto do mundo.

O novo clube das grandes potências, segundo Fiori, certamente incluirá, pelo menos, EUA, China, Rússia, Índia e União Europeia (modificada, militarizada e liderada pela Alemanha). E não seria impossível - isso é assustador - imaginar um pacto entre EUA e China, com o surgimento de um “superimperialismo”. E com um detalhe: a nova corrida armamentista dessas potências, todas nucleares, já se dá não apenas na terra, mas no espaço sideral, observa o professor Daniel Barreiros, da UFRJ em aula na FESPSP.

De qualquer forma, até que a nova ordem se estabeleça, prevê Fiori, o mundo deve atravessar um período de flutuação, turbulência, instabilidade e imprevisibilidade até a segunda metade do século XXI. Boa sorte, gerações Alpha e Beta.

 

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