terça-feira, 27 de maio de 2025

Quem são os trabalhadores por conta própria no Brasil - João Saboia*

Valor Econômico

Para o período entre 2019 e 2024, um dos resultados mais notáveis é o forte crescimento das ocupações com exigência de nível médio ou superior

Um dos principais agrupamentos existentes no mercado de trabalho brasileiro é composto por trabalhadores por conta própria (CP), que representam cerca de um quarto da população ocupada no país. Uma das marcas desse grupo é sua heterogeneidade, incluindo desde pessoas de baixa qualificação com rendimentos mensais inferiores ao salário mínimo (SM), até profissionais liberais de alto nível, cujos serviços oferecidos podem atingir valores bem elevados.

Outra característica dos CP é seu ajuste de acordo com a conjuntura econômica, usualmente crescendo em termos numéricos em períodos de recessão e diminuindo quando a economia volta a crescer. A baixa oferta de empregos durante a crise faz com que muitos desempregados encontrem uma forma de sobrevivência trabalhando como CP.

Os ciclos conjunturais, entretanto, não impedem que um grande contingente dos CP se estabeleça e permaneça nesse segmento do mercado de trabalho independentemente do ritmo da economia. Boa parte dos CP é composta por trabalhadores informais de baixa renda, mas a criação da figura do microempreendedor individual (MEI) representou a possibilidade de importante parcela dos CP se formalizarem.

Dados da PNAD Contínua do IBGE do último trimestre de 2024 permitem que se trace um quadro atualizado do perfil dos CP. Tais trabalhadores são em sua maioria homens (65%) não brancos (58%). Os desníveis de escolaridade são elevados (27% não possuem nem mesmo o fundamental completo, 35% completaram o curso médio, e 18% conseguiram atingir o nível superior). Trabalham nos mais diferentes setores da economia (19% no comércio, 14% na construção, 13% na agricultura e pecuária, 8% na indústria e o restante nos mais diversos segmentos do setor de serviços).

Suas jornadas de trabalho costumam ser elevadas, bem acima das 44 horas máximas regulamentares da CLT (cerca de um quarto dos CP estão acima desse limite). A distribuição de rendimentos confirma a concentração dos CP nos menores níveis (39% mal atingem o nível do SM, 30% recebem entre 1 e 2 SM e 16% entre 2 e 3 SM). Na extremidade superior, menos de 2% superam 10 SM.

A comparação do período anterior à covid (último trimestre de 2019) com o último trimestre de 2024 aponta para algumas mudanças importantes no perfil dos trabalhadores CP. Não custa lembrar que tais trabalhadores sofreram forte queda no início da pandemia, ficando impossibilitados de desenvolverem suas atividades por conta do isolamento social. Posteriormente, se recuperaram, atingindo 26 milhões de pessoas ocupadas no final de 2024. No período 2019/2024 houve crescimento de 7% no total de CP. Até que ponto teria havido mudanças no perfil dos CP nesse período?

Em termos de escolaridade houve avanços, o que não chega a surpreender, tendo em vista que esse movimento já vinha ocorrendo antes, estando associado ao próprio crescimento da escolaridade da força de trabalho em geral nas últimas décadas. Em termos de distribuição setorial onde atuam o quadro se modifica pouco. A distribuição de rendimentos continuou muito desigual e as jornadas de trabalho bastante longas. As mudanças mais importantes parecem ter sido nas ocupações dos CP ao longo do quinquênio.

A distribuição dos grandes grupos ocupacionais (GG) e sua evolução entre os dois anos pesquisados é ilustrativa das mudanças. O principal destaque cabe aos profissionais das ciências (GG 2) e técnicos e profissionais de nível médio (GG 3). Nos dois casos houve forte crescimento entre 2019 e 2024 (próximo a 40% nos dois casos). A regra geral foi de estagnação ou queda dos demais, exceto para os operadores de instalações/máquinas, condutores de veículos e montadores (GG 8).

Analisando de forma mais desagregada, alguns subgrupos ocupacionais (SG) merecem ser destacados, tanto no sentido de crescimento quanto de queda no período. Entre os sete mais numerosos com mais de 1 milhão de pessoas ocupadas, houve queda de vendedores (SG 52), agricultores (SG 61) e operários diversos (SG 75), e aumento de profissionais de direito, ciências sociais e culturais (SG 26), trabalhadores de serviços pessoais (SG 51) e condutores de veículos (SG 83). Os trabalhadores da construção (SG 71) permaneceram relativamente estáveis.

Um dos resultados mais notáveis é o forte crescimento das ocupações com exigência de nível médio ou superior. Embora representem uma parcela limitada dos CP, representam as melhores ocupações. Todos os 11 SG pertencentes aos GG 2 e 3 apresentaram crescimento do número de ocupados, com destaque para os profissionais de tecnologias da informação e comunicação (SG 25) que praticamente dobraram no período. Crescimento elevado acima de 50% também ocorreu com profissionais de engenharia (SG 21), profissionais da saúde (SG 22), especialistas em administração de empresas (SG 24) e técnicos de nível médio em tecnologias da informação e comunicação (SG 35). Uma das explicações para esses resultados poderia ser o movimento de “pejotização” que tem ocorrido no país, com a transformação de profissionais em pessoa jurídica na busca por vantagens tributárias.

Outra questão importante para a mudança do perfil dos CP poderia ser a própria pandemia. A redução desse tipo de trabalho no período da covid pode ter feito com que muitos CP não tenham conseguido retomar as mesmas atividades nos anos mais recentes, tendo que buscar outras formas de inserção ou abandonado o mercado de trabalho.

Um terceiro ponto seria o crescimento do MEI, que poderia ter atraído parte dos empregados do setor formal para se transformarem em CP. O MEI raramente tem um ajudante, sendo considerado em geral como CP. Ao se tornarem MEI os CP estão dando um passo na direção da formalização, representando uma parcela de CP mais desenvolvida. No último trimestre de 2024 havia cerca de 11,5 milhões de MEI em atividade no país, com limite mensal de faturamento de pouco menos de 5 SM.

Finalmente, pode-se ainda mencionar o crescimento do trabalho em plataformas digitais de transporte a partir da pandemia, como apresentado em nosso artigo do Valor de 12/08/2024 em coautoria com François Roubaud e Mireille Razafindrakoto. Tais trabalhadores são classificados como CP e contribuem para a mudança do perfil dos trabalhadores por conta própria no país. O crescimento do SG 83 no período parece confirmar esse ponto.

Em resumo, o trabalho por conta própria representa uma parcela importante do mercado de trabalho no Brasil. Tem se transformado nos últimos anos em vários sentidos e pelas informações disponíveis parece estar incorporando um volume crescente de profissionais de maior qualificação.

*João Saboia é professor emérito do Instituto de Economia da UFRJ.

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