Valor Econômico
Para o período entre 2019 e 2024, um dos
resultados mais notáveis é o forte crescimento das ocupações com exigência de
nível médio ou superior
Um dos principais agrupamentos existentes no
mercado de trabalho brasileiro é composto por trabalhadores por conta própria
(CP), que representam cerca de um quarto da população ocupada no país. Uma das
marcas desse grupo é sua heterogeneidade, incluindo desde pessoas de baixa
qualificação com rendimentos mensais inferiores ao salário mínimo (SM), até
profissionais liberais de alto nível, cujos serviços oferecidos podem atingir
valores bem elevados.
Outra característica dos CP é seu ajuste de
acordo com a conjuntura econômica, usualmente crescendo em termos numéricos em
períodos de recessão e diminuindo quando a economia volta a crescer. A baixa
oferta de empregos durante a crise faz com que muitos desempregados encontrem
uma forma de sobrevivência trabalhando como CP.
Os ciclos conjunturais, entretanto, não impedem que um grande contingente dos CP se estabeleça e permaneça nesse segmento do mercado de trabalho independentemente do ritmo da economia. Boa parte dos CP é composta por trabalhadores informais de baixa renda, mas a criação da figura do microempreendedor individual (MEI) representou a possibilidade de importante parcela dos CP se formalizarem.
Dados da PNAD Contínua do IBGE do último
trimestre de 2024 permitem que se trace um quadro atualizado do perfil dos CP.
Tais trabalhadores são em sua maioria homens (65%) não brancos (58%). Os
desníveis de escolaridade são elevados (27% não possuem nem mesmo o fundamental
completo, 35% completaram o curso médio, e 18% conseguiram atingir o nível
superior). Trabalham nos mais diferentes setores da economia (19% no comércio,
14% na construção, 13% na agricultura e pecuária, 8% na indústria e o restante
nos mais diversos segmentos do setor de serviços).
Suas jornadas de trabalho costumam ser
elevadas, bem acima das 44 horas máximas regulamentares da CLT (cerca de um
quarto dos CP estão acima desse limite). A distribuição de rendimentos confirma
a concentração dos CP nos menores níveis (39% mal atingem o nível do SM, 30%
recebem entre 1 e 2 SM e 16% entre 2 e 3 SM). Na extremidade superior, menos de
2% superam 10 SM.
A comparação do período anterior à covid
(último trimestre de 2019) com o último trimestre de 2024 aponta para algumas
mudanças importantes no perfil dos trabalhadores CP. Não custa lembrar que tais
trabalhadores sofreram forte queda no início da pandemia, ficando
impossibilitados de desenvolverem suas atividades por conta do isolamento
social. Posteriormente, se recuperaram, atingindo 26 milhões de pessoas
ocupadas no final de 2024. No período 2019/2024 houve crescimento de 7% no
total de CP. Até que ponto teria havido mudanças no perfil dos CP nesse
período?
Em termos de escolaridade houve avanços, o
que não chega a surpreender, tendo em vista que esse movimento já vinha
ocorrendo antes, estando associado ao próprio crescimento da escolaridade da
força de trabalho em geral nas últimas décadas. Em termos de distribuição
setorial onde atuam o quadro se modifica pouco. A distribuição de rendimentos
continuou muito desigual e as jornadas de trabalho bastante longas. As mudanças
mais importantes parecem ter sido nas ocupações dos CP ao longo do quinquênio.
A distribuição dos grandes grupos
ocupacionais (GG) e sua evolução entre os dois anos pesquisados é ilustrativa
das mudanças. O principal destaque cabe aos profissionais das ciências (GG 2) e
técnicos e profissionais de nível médio (GG 3). Nos dois casos houve forte
crescimento entre 2019 e 2024 (próximo a 40% nos dois casos). A regra geral foi
de estagnação ou queda dos demais, exceto para os operadores de
instalações/máquinas, condutores de veículos e montadores (GG 8).
Analisando de forma mais desagregada, alguns
subgrupos ocupacionais (SG) merecem ser destacados, tanto no sentido de
crescimento quanto de queda no período. Entre os sete mais numerosos com mais
de 1 milhão de pessoas ocupadas, houve queda de vendedores (SG 52),
agricultores (SG 61) e operários diversos (SG 75), e aumento de profissionais
de direito, ciências sociais e culturais (SG 26), trabalhadores de serviços
pessoais (SG 51) e condutores de veículos (SG 83). Os trabalhadores da
construção (SG 71) permaneceram relativamente estáveis.
Um dos resultados mais notáveis é o forte
crescimento das ocupações com exigência de nível médio ou superior. Embora
representem uma parcela limitada dos CP, representam as melhores ocupações.
Todos os 11 SG pertencentes aos GG 2 e 3 apresentaram crescimento do número de
ocupados, com destaque para os profissionais de tecnologias da informação e
comunicação (SG 25) que praticamente dobraram no período. Crescimento elevado
acima de 50% também ocorreu com profissionais de engenharia (SG 21),
profissionais da saúde (SG 22), especialistas em administração de empresas (SG
24) e técnicos de nível médio em tecnologias da informação e comunicação (SG
35). Uma das explicações para esses resultados poderia ser o movimento de
“pejotização” que tem ocorrido no país, com a transformação de profissionais em
pessoa jurídica na busca por vantagens tributárias.
Outra questão importante para a mudança do
perfil dos CP poderia ser a própria pandemia. A redução desse tipo de trabalho
no período da covid pode ter feito com que muitos CP não tenham conseguido
retomar as mesmas atividades nos anos mais recentes, tendo que buscar outras
formas de inserção ou abandonado o mercado de trabalho.
Um terceiro ponto seria o crescimento do MEI,
que poderia ter atraído parte dos empregados do setor formal para se
transformarem em CP. O MEI raramente tem um ajudante, sendo considerado em
geral como CP. Ao se tornarem MEI os CP estão dando um passo na direção da
formalização, representando uma parcela de CP mais desenvolvida. No último
trimestre de 2024 havia cerca de 11,5 milhões de MEI em atividade no país, com
limite mensal de faturamento de pouco menos de 5 SM.
Finalmente, pode-se ainda mencionar o
crescimento do trabalho em plataformas digitais de transporte a partir da
pandemia, como
apresentado em nosso artigo do Valor de
12/08/2024 em coautoria com François Roubaud e Mireille Razafindrakoto.
Tais trabalhadores são classificados como CP e contribuem para a mudança do
perfil dos trabalhadores por conta própria no país. O crescimento do SG 83 no
período parece confirmar esse ponto.
Em resumo, o trabalho por conta própria representa uma parcela importante do mercado de trabalho no Brasil. Tem se transformado nos últimos anos em vários sentidos e pelas informações disponíveis parece estar incorporando um volume crescente de profissionais de maior qualificação.
*João Saboia é professor
emérito do Instituto de Economia da UFRJ.
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