segunda-feira, 2 de junho de 2025

A força do mistério - Ivan Alves Filho*

Álvaro Moreyra, o meu cronista preferido, estava absolutamente certo: o verbo da vida é andar. Foi assim que o Homem ocupou a Terra inteira, viveu a aventura da vida – de pé. Mas contou com a ajuda de pelo menos três verbos complementares ou auxiliares: amar, lutar e criar. 

E quem fala nesses verbos também pensa em Arte, em Literatura. Pois por intermédio da criação o Homem se juntou aos seus semelhantes, dividindo sua beleza interior com o mundo. A Arte une. E, de quebra, recompõe o Homem com ele mesmo.

Mas a Arte é um também mistério para todos nós. Segundo os dicionários, o mistério seria tudo aquilo que apresenta uma causa enigmática, ou até oculta. Só faltou ser dito: o mistério é algo feito para colocar medo nas pessoas. Creio, porém, que seria insuportável levar uma vida sem a presença do mistério. Saberíamos então de tudo e perderíamos a curiosidade diante dos fatos da existência. Muitos de nós não aguentaríamos viver dessa maneira. Sem contar que os religiosos das mais diversas crenças se sentiriam completamente abandonados e os detetives, provavelmente, amargariam um desemprego formidável. E a vida se transformaria, é razoável supor, em uma tremenda chatice. “Este mundo é redondo, mas está ficando mundo chato”, sentenciou certa vez Aparício Torelly, o Barão de Itararé, não podemos esquecer.

O mistério é a vida.

E a vida, ritual. A passagem da condição de menina para aquela de mulher materializa um dos momentos mais belos da natureza humana. Talvez mesmo o seu mais belo momento. Celebração da vida, essa passagem é, provavelmente, o rito mais difundido da Humanidade, conforme o atestam os mitos, os tratados antropológicos e os relatos de viajantes pelos quatro cantos do mundo. De fato, essa passagem se faz presente em todas as culturas. Não por acaso a palavra ritual vem de rtu, termo sânscrito que significa menstruação. Os índios do Mato Grosso, reunidos no Alto Xingu, celebram o fim do luto com um ritual, Quarup. Sim, vida também é rito.

Os religiosos e detetives que me perdoem, mas é possível conjeturar que a Arte e a Literatura seriam os domínios da ação humana que mais sofreriam abalos com uma eventual supressão do mistério. Pois não há explicação para a magia da atividade artística fora do mistério. E o dia em que o mistério fosse realmente desvendado, não haveria mais Literatura e Arte, pura e simplesmente. Ainda bem que esse dia não chegará nunca.

Pois se fôssemos racionalizar acerca de tudo que a Arte nos transmite, terminaríamos por não mais sentir. Deixaríamos de nos deliciar com a elegância dos diálogos de William Shakespeare ou de nos impregnar com os sons contrapontísticos de Johann Sebastian Bach. Ou então fecharíamos os olhos para a maravilha representada pelos quadros de Alessandro Botticelli ou as colunas de Oscar Niemeyer em Brasília. Ou seja, perderíamos a dimensão sensitiva da vida, seguramente. Na verdade, é nos sentimentos, nessa sensação inesgotável de encantamento, que reside a essência da Literatura e da Arte.

O mistério como base da criação, sempre. Talvez seja até melhor que ninguém consiga explicá-lo. Podemos aprender com alguns povos tradicionais da África que, ao cortarmos uma árvore, estaremos afastando Deus de nossas vidas. Certamente isso contribui para a preservação da vida muito mais do que determinados tratados de Ecologia. Ah, também, os poetas nos ensinam sobre as estrelas mais do que muitos estudos elaborados pelos astrônomos, pois sentem a presença delas. Em caso de dúvida, é só consultar Mário Quintana. Ele escreveu: “A noite acendeu as estrelas porque tinha medo da própria escuridão”.

O mistério, da mesma forma que a Literatura e Arte, não será desvendado jamais.

Ainda bem - e esse é mais um mistério.  

*Historiador.

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