O Globo
É muito difícil a relação com um governo
instável como o de Trump, mas esse desafio amadureceu as reações de México e
Canadá
Os Estados Unidos anunciaram
sua política de restrição de vistos para autoridades estrangeiras que reprimem
a livre expressão de americanos, quando estão fisicamente dentro do país. Isso
aconteceu quando eu havia terminado um artigo, afirmando que era preciso tirar Eduardo
Bolsonaro do caminho para entender o que se passa.
Não queria me indispor com os dois polos, apenas alargar um pouco o espectro da discussão. Creio que, ao processar Eduardo Bolsonaro, o Supremo deu a ele mais importância do que tem, atribuindo-lhe o poder de coagir os ministros. Esse movimento acaba encobrindo alguns fatos importantes. O primeiro é que o Departamento de Estado tem um setor que estuda e discute a América Latina, apesar da estreiteza de Donald Trump.
É ilusório supor que Eduardo Bolsonaro possa
manipular a opinião do governo americano. A nota mostra um alcance mais amplo,
que escapou apenas aos que continuam vendo o mundo dividido entre bolsonaristas
e petistas. Ela não se limita a falar da restrição a autoridades que reprimem o
direito de expressão. Isso é apenas o lado mais brando. A nota condena os
países que tentam obrigar as big techs americanas a mediar as intervenções nas
redes.
Em outras palavras, os países não lhes podem
impor suas leis nacionais, dentro de seu território. Isso envolve um choque não
só com o Brasil, mas também com Europa e Austrália. É
possível até que os Estados Unidos não divulguem a lista dos que não podem
entrar no país. Ela fica como uma espada, suspensa na cabeça dos alvos. Não
poder entrar nos Estados Unidos não é o fim do mundo. Muita gente passou por
esse transtorno — Charles Chaplin, por exemplo.
Existem dentro do governo americano, ou mesmo
próximo a ele, poderosos indispostos com Alexandre
de Moraes. Um deles, Elon Musk —
eu me arrisco a dizer —, é muito mais influente que Eduardo Bolsonaro. Há
alguns meses, a plataforma Rumble, associada à empresa de mídia de Trump,
entrou na Justiça americana contra Moraes.
Todo o quadro ficará mais claro se realmente,
como quer o STF, os diplomatas forem chamados para dar informações. Eles sabem
que as sanções a Moraes são defendidas por vários brasileiros que atuam nos
Estados Unidos, antes mesmo de Eduardo Bolsonaro. Além disso, a argumentação
americana é que agem em defesa de sua soberania, pois Moraes impõe restrições a
cidadãos americanos ou detentores do Green Card, portanto com direito
constitucional à livre expressão.
Como assim, os dois lados — Brasil e Estados
Unidos — sentem sua soberania ameaçada um pelo outro? Abre-se um espaço para
explicações mútuas, que podem resultar em algo menos dramático do que a
aplicação de uma lei como a Magnitsky, que implica proibição não só de entrar
nos Estados Unidos, como muitas sanções financeiras.
É muito difícil a relação com um governo
instável como o de Trump, mas esse desafio acabou amadurecendo as reações de
países como o México e
o Canadá.
Ambos souberam encontrar um espaço de resistência digna. O Brasil enfrenta uma
situação específica, talvez mais delicada ainda que o debate sobre tarifas
comerciais, embora esse tema também esteja na agenda.
Previ a colisão com as big techs há algum
tempo. Minha tese é que, se for necessário um confronto, é preciso se preparar
para ele, analisando nossas vulnerabilidades e necessidades em termos objetivos
(infraestrutura) e subjetivos (formação de gente), para que o Brasil possa
funcionar sem elas, em caso de boicote.
Em outras palavras, o momento pode ser muito
fértil para saídas demagógicas, mas implica uma complexa reflexão do tipo que a
empobrecida e radicalizada atmosfera política no Brasil não deixa acontecer.
Resta um bom tema para a psicologia: os Estados Unidos lançam a bandeira de
liberdade de expressão no mundo, precisamente no momento em que mais a reprimem
em estudantes, professores e cientistas.
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