quarta-feira, 25 de junho de 2025

A ilusão da regulação digital – Wilson Gomes*

Folha de S. Paulo

A crença de que novas leis resolverão os males da internet só pode gerar expectativas sociais impossíveis e frustração

Algumas coisas me preocupam nas disseminadas reivindicações de regulação do universo digital. Digo "universo digital" na falta de expressão melhor para abarcar tudo o que costuma ser fragmentado: redes sociais, plataformas, big techs, algoritmos, fake news e, até, "a internet".

A própria imprecisão na designação do objeto a ser regulado já indica a confusão em torno de uma demanda apresentada com senso de urgência e até de "já passou da hora".

Quando se escuta o que compele as pessoas a exigir regulação como resposta às suas aflições, o leque se abre ainda mais. Não estou nem falando do sujeito comum, para quem algoritmo deve ser algo parecido com alquimia, mas de jornalistas, pessoas públicas e juízes da Suprema Corte.

Automutilação de crianças, massacres em escolas, ataques racistas, homofóbicos ou misóginos, teorias da conspiração, campanhas de descredibilização das urnas eletrônicas, mobilização para golpes de Estado, vícios em conexão digital —são os exemplos mais comuns do que nos aflige.

Impressiona também a convicção generalizada de que tais problemas não podem ser enfrentados sem um novo marco legal. Isso se explica em parte por uma mentalidade muito brasileira: de um lado, uma paixão por criar leis; de outro, uma prática sistemática de burlá-las.

Na nossa cabeça, não há problema social importante que não possa ser resolvido com novos regramentos e um novo sistema de constrições que obriguem (ou proíbam) quem tem direito a fazer isto ou aquilo.

Houve um incêndio em uma boate e morreram muitos jovens? Faz falta uma lei que impeça que isso volte a acontecer. Menores cometeram crime bárbaro? Antecipe-se a maioridade penal. As leis em vigor nunca bastam; a solução está sempre na criação de tipos penais novos e penas mais severas. A lógica é simples: se as normas existentes resolvessem, o problema não existiria. Nunca é uma questão de aplicação da norma, mas da ausência de uma nova.

E, se as casas legislativas não criam os constrangimentos, as obrigações e as interdições que acreditamos serem necessárias, recorremos ao papa, aos magistrados ou à corte constitucional, ultimamente tão imbuída de uma disposição para a moralização tecnolegal da política.

O meu temor com essa angústia é que ela crie expectativas sociais irrealizáveis que serão inevitavelmente frustradas.

Mesmo porque, embora pareça haver convergência no que se reivindica, os desejos são muito diferentes. Há quem sonhe com um universo de interações e informações digitais um dia despoluído de fake news, teorias da conspiração, manipulações e enganos, assim como há quem imagine que as conversas digitais do futuro venham a ser um espaço seguro e protegido, isento de ódio e preconceito, para minorias sociais e políticas.

E há quem realmente creia, em 2025, que, em um mundo digital enfim expurgado de fake news e discurso de ódio, a direita radical —gerada nesse ambiente e supostamente sem qualquer outra substância— irá definhar e morrer.

Eis três expectativas que são fortíssimas candidatas à frustração, pois a esfera pública com que sonham nunca existiu nem existirá. Boa parte da reivindicação por um "ambiente digital saudável" e "obrigações de cuidado" parte de uma concepção idealizada da esfera pública, em que o dissenso moral e político seria domesticado por filtros civilizatórios.

Não, não, meu impaciente militante, não defendo inação. Apenas acho que o realismo é mais fecundo do que os desejos inconfessos de usar a regulação como forma de punição —ainda que simbólica— aos bilionários das big techs, que detestamos por serem bilionários e de direita; ou para supostamente impedir que a direita e os conservadores tomem dos liberais e da esquerda o coração das massas.

O realismo manda buscar os poucos consensos ainda possíveis nesta sociedade dividida, em que a vida digital é parte constitutiva da vida democrática. Há razoável consenso quanto à necessidade de prevenção de fraudes e à proteção de crianças contra conteúdos online, e há considerável dissenso sobre desinformação.

Pode-se chegar a um acordo que condena ataques diretos a pessoas —por racismo, misoginia, homofobia, xenofobia—, mas já sabemos que a compreensão sobre se outros atos estariam protegidos pela liberdadede expressão está em disputa.

Por que não trabalhar com os consensos em vez de fazer da regulação das atividades digitais parte da guerra política? Mesmo porque, avaliando a força de cada tropa nas casas legislativas e nas ruas, é melhor ter cuidado com a regulação que pode sair daí.

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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