- El País
É possível que dois “mitos” como Bolsonaro e Moro convivam sem se devorar?
Pode parecer paradoxal que um Governo como o atual do Brasil, de extrema direita, um dos mais confusos e sem rumo desde a redemocratização, tenha conseguido juntar dois dos grandes mitos nacionais, o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Justiça, o ex-juiz da Lava Jato Sérgio Moro. Até quando poderão conviver sem se devorar?
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A história dos mitos, que tem sua maior expressão na Grécia Antiga, mas remonta ao alvorecer da Humanidade, tem sobrevivido através dos séculos adaptando-se a cada época histórica. No entanto, algo como a busca desesperada para entender a existência sempre existiu, desde que os mitos se confundiam com as religiões que tentavam dar uma explicação para o cosmos e a morte. E os mitos eram criados pela tribo, pelo povo. Este criava seus deuses, seus heróis, seus seres superiores capazes de dar respostas às angústias do desconhecido que o atemorizava.
Aqueles mitos de heróis e deuses capazes de resolver angústias e decifrar mistérios chegaram até hoje. Persistem na esfera religiosa e até penetraram na política. Afinal, todos os famosos líderes populistas são alimentados pela base, principalmente pelos mais necessitados de que lhes resolvam suas ansiedades e angústias. E, assim como todos os mitos antigos, ainda hoje os novos mitos da política e da justiça têm um fundo religioso, que os conecta com as velhas divindades. Não é por acaso que todos os mitos políticos costumam apresentar um forte componente religioso, sejam de esquerda ou de direita.
Hoje o Brasil vive a novidade de ver governar juntos os dois maiores mitos do país depois do carismático Luiz Inácio Lula da Silva, que, mesmo condenado e na prisão, continua sendo o maior mito político da história moderna do país. Fora Lula, cuja trajetória política ainda não parece esgotada e poderia ressuscitar de suas cinzas como no velho mito da Fênix, os dois grandes mitos da política do Brasil atualmente são o presidente e capitão da reserva Bolsonaro e o ex-juiz Moro, que se retirou da magistratura para ensaiar sua nova aventura como político.
Ambos foram consagrados como mitos pelo povo. Bolsonaro foi apelidado assim por seus milhões de fiéis que o viram como um novo Messias capaz de libertar o país das garras da corrupção, da violência e da “praga da esquerda”, que segundo ele e suas hostes arruinaram o país e o despojaram de sua essência moral e religiosa. Para acrescentar um elemento essencial ao mito, o da proteção dos deuses, juntou-se a Bolsonaro a coincidência do atentado contra ele, visto, de baixo, como o sinal divino que o confirmava como o mito consagrado.
O outro mito é o do ex-juiz Moro, responsável principal pela Operação Lava Jato, que moveu em nível nacional uma cruzada contra a corrupção de políticos e empresários famosos. Pela primeira vez, aqueles intocáveis de colarinho branco acabaram na prisão, algo inédito até então neste país, considerado o da impunidade dos poderosos. Também neste caso, foi o povo que elevou o juiz Moro à categoria de mito, de escolhido pelos deuses. Era o novo superman contra a corrupção.
Hoje esses dois mitos populares, depois de o juiz Moro ter dado o salto − que poderia acabar sendo mortal para ele − da justiça para a política, aceitando ser o ministro da Justiça de um Governo de extrema direita, acabaram juntos. Algo inédito na política do país, assim como a convivência pacífica de dois mitos. Quem conhece a história antiga sabe que os mitos nunca conseguiram conviver. Os deuses eram ciumentos e não admitiam que outros mitos coexistissem com eles. Devoravam-se mutuamente. Hoje é assim na política. Na era moderna, não conhecemos nenhum caso em que dois mitos convivam em paz em um partido ou em um governo. Um deles está fadado a sucumbir.
No Brasil, existiu pela primeira vez a possibilidade de que, no Partido dos Trabalhadores (PT), convivessem dois grandes mitos, o do ex-torneiro mecânico Lula, que chegou à presidência e se tornou um mito mundial, e o de sua sucessora, Dilma Rousseff, que ele havia escolhido também como outro mito, o de ser a primeira mulher a chegar à chefia de Estado do Brasil, e também acabou sendo uma figura mítica internacional. No entanto, nem nesse caso foi possível a convivência pacífica de dois mitos. Dilma logo quis buscar seu caminho de glória, sua consagração como mito, desta vez feminino, e começou a se distanciar de seu deus protetor. A ruptura entre os dois mitos é hoje conhecida por todos. Lula confidenciou a seus íntimos que Dilma “não o obedecia”. Ela havia apostado em sua independência. Quis ser mito como ele. Se Lula representava o lulismo, Dilma representava o dilmismo. E a história antiga se repetiu com eles: os mitos não podem conviver.
Hoje temos Bolsonaro e Moro, dois mitos até ontem indiscutíveis e reconhecidos pela base, embora o pedestal de mito de Moro tenha começado a rachar sob a suspeita de que o ex-juiz tenha usado o poder de seu cargo e de seu mito para eliminar, com sua força judicial, o grande mito da política, Lula. O certo é que hoje Bolsonaro e Moro parecem contradizer a história de que dois mitos não podem conviver pacificamente e de que um deles acabará sacrificado. Ambos se esforçam para demonstrar que é possível conviver lado a lado, e assim começam a aparecer em público. Até quando? Alguém se atreve a apostar?
Carlos García comentou neste jornal o livro A Imagem Mítica, de Joseph Campbell, que defende a tese de que os mitos continuam vivos e necessários para uma Humanidade que ainda não soube decifrar nem o mistério da morte, muito menos o da vida. Por isso, continuam sendo criados mitos, como no passado. É verdade que, como dizia o filósofo espanhol Ortega y Gasset, “as ideias deveriam se sobrepor” aos mitos. Ninguém conseguiu isso ainda.
O que ocorre, segundo García, é que embora os mitos persistam e pareçam não querer morrer, quando ultrapassam a fronteira do divino e se infiltram na política “se prestam para releituras e manipulações, às vezes perversas”. Seria uma profecia para o Brasil de hoje, onde ainda poderíamos ver, como no Velho Olimpo dos deuses, os mitos Bolsonaro e Moro engalfinhados em um festim canibalesco?
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