sexta-feira, 8 de abril de 2022

Flávia Oliveira: Debate sobre aborto é interrompido

O Globo

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu numa live da CUT que aborto seja tratado como problema de saúde pública e direito das mulheres. Foi atacado e silenciado, como são atacados e silenciados feministas e especialistas que, num país (supostamente) democrático, tentam avançar no debate sobre direitos sexuais e reprodutivos, bem como enfrentar a tragédia imposta a milhares de brasileiras por interrupção de gravidez, ano sim, ano também. A reação de adversários políticos, líderes religiosos, formadores de opinião e até de aliados do campo progressista consumidos pelo pragmatismo eleitoral fez o pré-candidato do PT ao Planalto voltar atrás. Disse que, pessoalmente, é contra o aborto e buscou atenuar um comentário que, na origem, não era nem impróprio nem polêmico, mas óbvio.

Um mês atrás, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reuniu numa publicação 50 recomendações relacionadas ao aborto de qualidade: de evidências científicas, incluindo prática clínica e prestação de serviços de saúde, a apoio legal e político à intervenção. A agência defendeu abertamente que “mulheres e meninas possam acessar serviços de aborto e planejamento familiar, quando precisarem”. Três em quatro países do mundo penalizam legalmente o aborto, com medidas que vão de multas a prisão de quem realizar ou auxiliar na interrupção. Anualmente, ainda segundo a OMS, 39 mil mulheres morrem e milhões são hospitalizadas por complicações causadas por 25 milhões de intervenções impróprias em todo o planeta.

Vizinhos sul-americanos recentemente flexibilizaram a legislação local. A Corte Constitucional da Colômbia, em fevereiro passado, descriminalizou o aborto até 24 semanas de gestação. A Argentina, em 2021, aprovou lei de interrupção voluntária da gravidez. Canadá, Estados Unidos, Cuba, Uruguai e Guiana são países do continente americano com aborto legal. O recém-empossado presidente do Chile prometeu avançar na pauta. “Educação sexual para decidir, anticoncepcional para não abortar, aborto legal para não morrer” foi lema na moderna e madura campanha de Gabriel Boric.

No Brasil, os pesquisadores Bruno Cardoso, Fernanda Vieira e Valeria Saraceni, todos ligados à Secretaria municipal de Saúde do Rio de Janeiro, publicaram artigo em 2020 sobre dados oficiais de aborto no Brasil. Com as informações públicas disponíveis, chegaram a 200 mil internações anuais por procedimentos relacionados à interrupção de gravidez entre 2008 e 2015. Contaram, de 2006 a 2015, 770 óbitos maternos. Concluíram que têm mais chance de morrer por intervenção inadequada as mulheres pretas e indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, moradoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, sem companheiros. É mazela decorrente de pobreza, falta de informação, desassistência.

Pesquisa recente do Instituto Patrícia Galvão e do Instituto Locomotiva mostrou que oito em dez entrevistados — 2 mil homens e mulheres com 16 anos ou mais — reconhecem que as principais vítimas da criminalização do aborto são mulheres pobres; 84% sabem que a interrupção clandestina em condições inadequadas é causa de morte de grávidas no país. Dois terços dos brasileiros consultados concordam que criminalizar não resolve o problema; 64% dizem que aborto deveria ser questão de saúde pública ou de direitos; só 3% disseram que é assunto para religião.

No passado, o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, chegou a defender a descriminalização do aborto, referindo-se às muitas mulheres que perderam a vida “em clínicas de fundo de quintal”. Hoje, o debate é interditado, sobretudo entre evangélicos. Em seguidas eleições, é usado por candidatos conservadores para minar o apoio aos progressistas. Àquele grupo, interessam o reducionismo do contra ou a favor, à moda Fla-Flu, e o silenciamento do debate democrático.

Na consulta Locomotiva/Patrícia Galvão, três em cada quatro brasileiros defenderam que os casos em que o aborto legal é permitido devem ser mantidos ou ampliados. Mais da metade (52%) declarou que a interrupção deve continuar autorizada em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia fetal; outros 22% querem maior flexibilização da lei. Eleitorado e candidatos à Presidência — e, sobretudo, ao Legislativo — precisam falar e ouvir sobre descriminalizar o aborto, avançar na legislação em que a intervenção é permitida e/ou garantir o acesso legal para que mulheres não saiam mutiladas nem mortas ao interromper a gestação. O tema é tão urgente quanto dramático, porque se relaciona à formulação de políticas públicas e ao arcabouço legal de enfrentamento a uma realidade que onera o sistema de saúde e enluta, sobretudo, famílias pobres.

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