sábado, 14 de setembro de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - A União Europeia e sua economia

CartaCapital

O plano de Mario Draghi e a inspiração chinesa

O Financial Times exibiu uma extensa matéria que cuidou do projeto encomendado pela União Europeia a Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu. Draghi sugeriu uma “nova estratégia industrial para a Europa”. Na visão do ex-presidente do BCE, o enfrentamento do “atraso europeu” vai exigir investimentos de 800 bilhões de euros ao ano.

Esse elevado valor anual é destinado a financiar uma reforma radical e rápida para impedir que a UE fique atrás dos EUA e da China. Draghi propõe uma revisão geral da forma como a UE angaria fundos para investimentos. Trata-se de formular uma estratégia de novos financiamentos para o conjunto dos países que formam a União Europeia. Isso envolve a criação e desenvolvimento de “ativos comuns”.

O Financial Times diz que “o aguardado relatório do antigo primeiro-ministro italiano, encomendado pela UE, apela a Bruxelas para impulsionar uma reorientação significativa da política econômica. As principais recomendações incluem o relaxamento das regras de concorrência para permitir a consolidação do mercado em setores como telecomunicações; integração dos mercados de capitais por meio da centralização da supervisão do mercado; maior uso de compras conjuntas no setor de defesa; e uma nova agenda comercial para aumentar a independência econômica da UE”.

Draghi lança um lamento: “Nunca no passado a escala dos nossos países pareceu tão pequena e inadequada em relação ao tamanho dos desafios”.

Leio na imprensa brasileira artigos instigantes, alguns intrigantes, a respeito de políticas industriais, de comércio exterior e de competitividade, sobretudo as que envolvem a presença coordenadora do Estado. Há quem se habilite a invocar abstratamente as virtudes dos ganhos de produtividade e de competitividade, sem investigar com rigor as formas de organização, de financiamento e os padrões de cooperação entre as esferas públicas e do setor privado nos sistemas nacionais de Pesquisa & Desenvolvimento.

Vou sugerir a leitura do ­Entrepreneurial State, de Mariana Mazzucato. O livro de Mazzucato seria bem acompanhado pelo trabalho de Usha Haley e George ­Haley. O título é sugestivo: Subsidies to ­Chinese Industry: Capitalism, Business ­Strategy and Trade Policy. Os Haley tratam das relações entre as empresas e as políticas governamentais na China recorrendo a uma exaustiva investigação empírica, sem apelar para o blablablá ideológico e, não raro, hipócrita, da falsa oposição entre Estado e Mercado, leia-se, entre concorrência e planejamento de longo prazo na experiência mais fascinante do capitalismo contemporâneo.

Os estudos de Mazzucato e dos ­Haley cuidaram de sublinhar as relações peculiares entre os Estados nacionais, os sistemas empresariais, os programas de inovação tecnológica e a “inserção internacional”. Procuraram chamar a atenção para a centralidade da “organização capitalista” em que prevalecem nexos, digamos, “cooperativos” nas relações entre as empresas e as burocracias civis, militares e de segurança encarregadas de fomentar e administrar o sistema de avanço tecnológico (P&D).

Ao examinar essas relações nos Estados Unidos, Mariana Mazzucato desmascara o mito dos “gênios da garagem” e reduz a pó as lendas marqueteiras que celebram o papel do venture ­capital. Mazzucato descreve minuciosamente o roteiro para o sucesso da Apple de Steve Jobs e seus iPads e iPods. A ação do ­Estado não só garantiu o abastecimento do capital paciente e capaz de encarar o risco da inovação, mas também ajudou a coordenar as relações entre a grande empresa integradora e seus fornecedores.

No caso chinês, investigado por Haley & Haley, tem sido crucial a presença dos bancos públicos no provimento de crédito para permitir a apropriação da tecnologia, mediante a utilização das empresas estatais para a formação de joint ­ventures com o capital estrangeiro e promover a “administração estratégica” do comércio exterior. Essa arquitetura institucional não só assegurou excepcionais taxas de investimento e de acumulação de capital, como também ensejou programas de “graduação” tecnológica.

A ação estatal cuidou, ademais, dos investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas como plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados industriais preparados para a batalha da concorrência global. Não é difícil perceber que as estratégias chinesas de expansão acelerada, impulso exportador, rápida incorporação do progresso técnico e forte coordenação do Estado foram inspiradas no sucesso anterior de seus vizinhos, sócios e competidores.

Apenas uma reforma radical e rápida impedirá a UE de ficar atrás dos EUA e da China

Os sistemas financeiros que ajudaram a erguer os países asiáticos eram especializados no abastecimento de crédito subsidiado e barato às empresas e aos setores “escolhidos” como prioritários pelas políticas industriais. O circuito virtuoso ia do financiamento para o investimento, do investimento para a produtividade, da produtividade para as exportações, daí para os lucros e dos lucros para a liquidação da dívida. A produtividade desceu do éter onde sobrevivem as abstrações dos macroeconomistas para baixar à terra dos homens de carne e osso.

O livro China versus West, de Ivan ­Tselichtchev, dá a dimensão da transformação ocorrida na economia do Império do Meio. Nos anos 1980 a economia chinesa detinha os mesmos 1% do Brasil de participação no comércio mundial, em 2010 sua participação saltou para 10,4%, contra 8,4% dos EUA, 8,3% da Alemanha. Durante a primeira década do novo milênio a taxa de crescimento média anual da economia chinesa foi de 10,5%, contra 1,7% dos EUA e 0,9% da Alemanha. Ao final da década a China respondia por 42% da produção mundial de televisores em cores, 67% dos produtos de vídeo, 53% dos telefones móveis, 97% dos PCs, e 62% das câmeras digitais.

São frequentes as digressões dos macroeconomistas conservadores a respeito do desempenho da economia chinesa. Para essa turma, as elevadas taxas de investimento e crescimento da China foram impulsionadas pelo perfil “poupador” de seu povo. Trata-se da falácia que balbucia repetidamente o dogma “primeiro a poupança depois o investimento”.

Já foi dito acima, mas há que repetir: o sistema financeiro chinês abasteceu crédito em condições adequadas de prazo e custo às empresas e aos setores “escolhidos” como prioritários pelas políticas industriais. O circuito virtuoso vai do financiamento para o investimento, do investimento para a produtividade, da produtividade para as exportações, daí para os lucros das empresas e dos lucros para a “poupança”. •

Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Brilhante! Enquanto isto, os colunistas mercadófilos balbuciam previsões sobre a "necessidade" de aumento da taxa Selic de juros no Brasil pelo Banco Central, mesmo que tenhamos uma das maiores taxas reais de juros do mundo e uma inflação das mais controladas.