- Folha de S. Paulo
Críticas de Bolsonaro às políticas para o setor audiovisual mostram que seu nacionalismo é de fachada
Estimulado por um estudo apócrifo que denunciava falta de fiscalização do uso de verba pública e o financiamento de filmes de temática indecente, o presidente Jair Bolsonaro iniciou uma cruzada contra as políticas para o setor audiovisual.
Em uma transmissão pelo Facebook na última quinta-feira (25) foi taxativo: "Vamos buscar a extinção da Ancine. Não tem nada que o poder público tenha que se meter em fazer filme. Que tenha uma empresa privada, sem problema nenhum. Mas o Estado vai deixar de patrocinar isso daí".
O audiovisual não é um setor econômico qualquer. Filmes são produtos sui generis porque são portadores de valores e visões de mundo e, desde que seu consumo se expandiu, no início do século 20, passaram a concorrer com o repertório simbólico das tradições populares e com o que era propagado pelo sistema educacional.
Por esse motivo, governos de diferentes orientações adotaram medidas regulatórias, como o financiamento à produção e as cotas de tela (percentuais de exibição mínimos para filmes nacionais) —a França adotou essas políticas nos anos 1910, e o Brasil, nos anos 1930.
A natureza particular do audiovisual e de outros produtos das indústrias culturais é tão evidente que ganhou um estatuto especial nas regras que fomentam o comércio internacional, conhecido como a "exceção cultural".
Quando olhamos para o panorama internacional, vemos que os países nos quais o mercado de cinema não é dominado pela produção americana são de três tipos: ou são autoritários, como o Irã, ou têm políticas regulatórias amplas, como a Coreia do Sul e a França, ou têm o que a literatura chama de "desconto cultural", isso é, consomem filmes com traços culturais tão particulares que apenas a produção local consegue atender (é o caso, por exemplo, da Índia).
As políticas brasileiras têm virtudes e defeitos. O Brasil tem uma produção de filmes e um percentual de mercado semelhante ao de outros países da América Latina, como a Argentina e o México. Tem também problemas, como produzir muitos filmes que não são vistos, elos da cadeia que são subfinanciados (como o roteiro e a promoção) e uma estrutura institucional esdrúxula, com uma agência que fomenta e regula ao mesmo tempo.
Nenhum desses problemas será resolvido com a extinção da Ancine.
Abrir mão da Ancine e enterrar quase um século de políticas para o setor, como sugere Bolsonaro, não é apenas matar todo um setor produtivo, mas entregar um dos principais instrumentos de formação de repertório simbólico a um país estrangeiro. Estranho o nacionalismo do presidente Jair Bolsonaro.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
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