- Valor Econômico
Governo precisa resistir às pressões tributárias
Era uma vez um país continental, com uma legislação tributária caótica, que tornava a vida de cidadãos e empresários um inferno. Impostos incidiam em cascata, tirando a competitividade dos produtos no exterior. O emaranhado de normas emitidas pela União e pelas dezenas de Estados exigia um aparato burocrático que consumia tempo e recursos das empresas, além de estimular a sonegação. Diversos setores da economia faziam lobby para extrair do governo e do Legislativo incentivos e isenções, e a carga tributária foi sendo aumentada ao longo dos anos para controlar os déficits fiscais.
Durante décadas se debatia a necessidade urgente de uma reforma tributária. Sucessivos governos de centro-esquerda apresentaram projetos que acabaram não avançando no Congresso - todos concordavam que era preciso mudar, mas ninguém queria correr o risco de perder arrecadação. Até que um líder nacionalista, vindo de um partido de direita, chegou ao Poder e assumiu a reforma tributária como um dos alicerces de seu programa econômico liberal.
A proposta era simplificar e racionalizar o sistema, aproximando-o dos principais países do mundo: o novo Imposto sobre Bens e Serviços substituiria diversos tributos federais e estaduais, incidindo apenas sobre o valor adicionado ao longo da carreira produtiva, com alíquotas uniformes em todos os Estados e cobrança no destino, para acabar com a guerra fiscal. As alíquotas foram balanceadas de forma a minimizar seu impacto sobre as contas públicas e também se criou um fundo para suavizar as perdas dos Estados com a nova metodologia.
A reforma teve efeitos imediatos. Estudos indicam que, graças à unificação da papelada, o fluxo do transporte rodoviário melhorou 30% nos primeiros meses de vigência do novo imposto por causa da redução da burocracia, a ponto de o jornal Financial Times saudar a mudança como o início de uma "revolução logística". Por fazer o que parecia impossível, o chefe de governo conseguiu uma vitória avassaladora nas eleições seguintes.
A descrição dos parágrafos acima não é um exercício de futurologia sobre a reforma tributária brasileira. Trata-se do que aconteceu com a Índia, cujo novo imposto sobre o consumo de bens e serviços é um dos grandes trunfos da gestão do primeiro-ministro Narendra Modi.
A aprovação da nova legislação tributária foi um fato tão marcante na história recente da Índia que o início de sua vigência foi comemorado numa sessão solene do Congresso Nacional à meia-noite entre os dias 30 de junho e 1º de julho de 2017, tal qual aconteceu na declaração de independência em 15 de agosto de 1947. A escolha dessa forma de celebração oferece a dimensão de como foi difícil vencer os obstáculos colocados por uma federação com 22 línguas oficiais em 29 Estados, cada qual com a competência para definir suas próprias normas e documentos sobre tributos indiretos.
O sucesso na tramitação legislativa da matéria num país tão complexo quanto a Índia dá esperanças de que seja possível repeti-lo no Brasil. Mais do que isso, o caso indiano oferece lições de como o desenho das regras tributárias pode impactar mais ou menos a economia.
De acordo com a pesquisa Doing Business, do Banco Mundial, nos dois primeiros anos de vigência da reforma tributária a Índia subiu 50 posições no ranking que mede a dificuldade de se pagar impostos no mundo. Apesar da melhoria notável, o país ainda se encontra na 121ª posição mundial. A razão para ter melhorado em relação ao seu próprio caos anterior, mas ainda ficar longe das melhores práticas internacionais, reside nas opções feitas durante o processo legislativo.
Cedendo a pressões de diversos setores produtivos, a Índia implantou 5 faixas diferentes de alíquotas para o novo imposto (0%, 5%, 12%, 18% e 28%), sendo que o modelo mais frequente internacionalmente, adotado por 49 países, é o de alíquota única - quanto mais alíquotas, mais complexo fica o sistema.
Além disso, o novo tributo indiano tem muitas isenções - de alimentos a planos de saúde -, e um amplo regime especial para micro e pequenas empresas. Instituídas para aliviar o efeito da tributação sobre os mais vulneráveis, essas medidas reduzem a base tributária, geram cumulatividade, aumentam o custo burocrático e, no caso das micro e pequenas empresas, incentivam fraudes no registro de empresas. Para os especialistas, melhor seria adotar uma taxação uniforme para toda a economia, e atacar a pobreza e a falta de competitividade das pequenas empresas com transferências orçamentárias e políticas públicas próprias.
O day after da reforma na Índia também serve de lição para o Brasil. Lá o governo ainda patina para entregar uma infraestrutura de tecnologia da informação que facilite o lançamento e o recolhimento dos tributos, assim como sofre muitas críticas quanto à demora e à burocracia na restituição dos créditos tributários gerados nas operações ao longo da cadeia produtiva.
O Brasil não tem tanta complexidade linguística como a Índia, mas nosso sistema tributário é ainda mais intrincado. Segundo o mesmo relatório Doing Business do Banco Mundial, as empresas brasileiras gastam em média 1.958 horas por ano para o cumprimento das obrigações tributárias - os indianos, antes da reforma, precisavam de 275,4 horas por ano, sete vezes menos.
Todas as propostas em pauta por aqui prometem as maravilhas da simplificação de nosso sistema tributário. Mas não podemos nos esquecer que muita gente se beneficia do carnaval tributário brasileiro, um verdadeiro festival de regimes especiais, isenções, incentivos, geração de créditos presumidos e reduções de base de cálculo que foram sendo instituídos pelos governos federal e estaduais ao longo do tempo.
A unificação de IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS, entre outros tributos, não será indolor. À medida que a tramitação legislativa avançar, haverá choro e ranger de dentes. E como a reforma indiana demonstrou, para se aproximar da fronteira em que atuam os países mais avançados será preciso resistir à pressão de quem lucra com o caos e às tentações do populismo tributário. Namastê.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de "Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro".
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