domingo, 9 de outubro de 2022

Muniz Sodré* - O macaco do dia seguinte

Folha de S. Paulo

Entre nós, brasileiros, falta estabilidade ao 'ismo' característico das ideologias

Nunca foi tão oportuna uma tirada reflexiva de Mário Quintana: "O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser o nosso futuro". A frase vem ao encontro de conjeturas sobre a possibilidade de um bolsonarismo sem Bolsonaro, insinuada pelo próprio Lula. A sobrevivência pós-eleitoral do trumpismo suscita naturalmente questões comparativas dessa natureza.

O poeta dá uma estocada irônica no criacionismo com sua negação histriônica da teoria darwiniana da evolução das espécies em favor da descendência humana direta de Adão e Eva. Mas é também pretexto para a hipótese de que opções eleitorais pregressas sejam menos relevantes do que os riscos de sua repetição como fenômeno social. Afinal, pode-se votar com cérebro de macaco e depois, alertado por um neurônio humano, corrigir-se.

A consciência civil tem dificuldade em aceitar o fato de que o adepto de um indivíduo avesso à normalidade vigente possa fechar os olhos à aberração extremista e agarrar-se ao que lhe pareça reconfortante. A explicação está no medo exacerbado do mundo. Sonha-se com um perigo: o fato é imaginário, o medo é real. A ilusão de uma parceria é tranquilizante. O iludido não precisa acreditar no que ouve, basta sentir que está num galho seguro: um candidato extremista, uma igreja integrista.

Isso é certamente mais instável aqui do que num cenário de fricção de classes tão aguda como os EUA de hoje. O trumpismo, temida semente de uma secessão civil, tem firme base neofascista.

Entre nós falta estabilidade ao "ismo" característico das ideologias. Um só partido político faz jus ao nome, a maioria é geleia mista de grifes efêmeras, gerências de verbas. Ideias, se existem, são tão secretas quanto se querem os orçamentos. Nas elites de renda e propriedade, cinismo e hipocrisia saíram das sombras centenárias.

Extremismo é o deserto das esperanças políticas. Mas no fundo é vontade de pertencer: a uma rede de convívio religioso, a uma ruidosa "torcida" populista, a uma bolha, ainda que silenciosa. É isso a direita radical: almas desemparadas, doentes de medo e propensas a amar o subumano, desde que lhes dê algum conforto.

Assim, o dia seguinte de uma vitória da democracia nas urnas presidenciais enfrentará o retrocesso mental e o pior Congresso da história (descontado o pequeno avanço da diversidade), um primata solto na buraqueira. Não é onda, é um mar morto povoado de fósseis, que emergiu. Fóssil não tem vida, mas pega fogo. Bolsonarismo pode ser nome transitório do pior. Se a fonte emocional do "ismo" se tornar radioativa, os fiéis pularão para outra, como crente troca de igreja ou macaco de galho.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".

Um comentário:

Anônimo disse...

O genocida nega a existência de FOME no nosso país, e agora aparece disposto a comer CARNE HUMANA... Há pouco, dizia pra população não comprar feijão, mas COMPRAR ARMAS... Estas são algumas VERDADES sobre Bolsonaro!