O Globo
Com Bolsonaro inelegível e a terceira via
em extinção, Lula parece cada vez mais empenhado em liderar a oposição a si
mesmo
Em 1985, ano da redemocratização, a banda O
Espírito da Coisa fez sucesso com uma canção em que a personagem anunciava:
— Mamãe, eu acho que estou/Ligeiramente
grávida.
Cinco anos antes, Kleiton e Kledir já
tinham flexibilizado a virgindade:
— A mãe da moça me garantiu/É virgem, só
que morou no Rio.
Fecundação, ruptura do hímen e — sabemos
agora — democracia, tudo é relativo. Absoluto, só o 0 K (-273,16 °C) ou o
desprezo do presidente Lula por
sua história e pela inteligência de quem, por três vezes, o elegeu presidente.
Seu conceito de democracia anti-Denorex (que não parece, mas é) ou democracia feijoada (que tem tudo de porco, mas não é porco) veio para justificar o apoio à ditadura de Nicolás Maduro, que promove a maior tragédia humanitária da América do Sul. Isso enquanto metade do Brasil ainda respira aliviada por ter se livrado dos arroubos autoritários de Bolsonaro, e outra metade acha que agora é que a democracia corre mais riscos.
Estando Bolsonaro inelegível e a terceira
via em via de extinção (só o Ibama na causa!), Lula parece cada vez mais
empenhado em ser o líder da oposição a si mesmo. Com tanta coisa a fazer por
aqui, atravessou o Equador para ir escorregar em casca de banana na Ucrânia. Em
vez de criar um Ministério da Compliance e garantir que fraudes não voltem a
prosperar, insiste que elas não ocorreram — seja nos estádios da Copa de 2014,
seja na Petrobras (só falta dizer que a Odebrecht se dedicava à filantropia). E
afirma ter orgulho de ser chamado de comunista (os camaradas Stálin, Mao, Pol
Pot, Ceausescu, Hoxha e Fidel agradecem a deferência).
Lula não está sozinho no elogio da
democracia líquida. A China (do massacre da
Praça da Paz Celestial, da ocupação do Tibete, do controle da informação, da
perseguição aos uigures) se diz uma “ditadura democrática do povo”. A Rússia de
1917 seria uma “ditadura democrática operário-camponesa”, segundo Lênin. A
finada Alemanha Oriental (da Stasi, do muro) se chamava, oficialmente,
República Democrática Alemã. A Coreia do
Norte, propriedade privada da dinastia Kim, atende por República
Popular Democrática da Coreia. No “Índice da democracia” da Economist, a
República Democrática do Congo ocupa a 162ª posição entre 167 países (o Brasil,
com sua “democracia imperfeita”, é o 51º).
Mas há momentos em que Lula dá uma folga à
fantasia. É quando tuíta que, “se o Brasil tivesse continuado com o ritmo de
crescimento que tínhamos quando deixei a Presidência, poderíamos ser a 4ª
economia do mundo” (à frente, portanto, de Alemanha, Reino Unido, França, Índia
e Itália). É a primeira vez que faz uma crítica tão direta a sua sucessora,
hoje presidenta do Banco do Brics.
Se o conceito de democracia é relativo, por
que não seria também o de ditadura? Será que Bolsonaro e seus “patriotas” não
tinham em mente apenas uma pós-democracia, à sua maneira? Afinal, não lutavam contra
a “ditadura da toga”, e seu maior bicho-papão não era a “ditadura do
proletariado”?
Lula parece querer que acreditemos que
a Venezuela esteja
ligeiramente democrática. (Eleição fraudada não deixa de ser eleição, né?) E
que o regime que tem em mente para o Brasil não seja o preconizado pelo Foro de
São Paulo, mas democracia pura — só que morou em Caracas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário