O Globo
As revelações do ex-PM Élcio Queiroz sobre o assassinato de Marielle Franco, tornadas públicas nos últimos dias, impressionam pela quantidade de detalhes. Lacunas importantes foram preenchidas a respeito do que se passou antes e depois da noite de 14 de março de 2018, quando a vereadora e seu motorista, Anderson Gomes, morreram. Soube-se, por exemplo, que os assassinos passaram meses planejando o homicídio, que a placa do carro usado na ação foi “picotada”, com os pedaços espalhados numa linha férrea, e que o matador, Ronnie Lessa, foi tomar cerveja num bar logo depois de executar Marielle. Também veio à tona que o intermediário utilizado pelo mandante era outro matador, executado em 2021 num episódio até hoje sem solução. Para quem conhece o submundo do crime no Rio de Janeiro, porém, o enredo tem um quê de flashback, que só reforça o simbolismo do caso para a história do combate ao crime organizado no Brasil.
Quando Marielle e Anderson morreram, os
investigadores logo perceberam que o crime só podia ser obra de um grupo muito
restrito de assassinos profissionais. Um deles era Lessa, ex-PM e líder de uma
milícia na Zona Norte da capital, capanga e “sócio” do bicheiro Rogério Andrade.
Outro era o também ex-PM Adriano da Nóbrega, chefe de uma quadrilha apelidada
de Escritório do Crime e ligado ao jogo do bicho. Esses e outros pistoleiros se
tornaram célebres na criminalidade pelo largo histórico de homicídios cometidos
à luz do dia, com fartura de tiros, testemunhas e evidências, sem que nada
fosse provado ou apurado. A história está contada em detalhes no excelente podcast Pistoleiros, produzido pelo repórter
do GLOBO Rafael Soares para o Globoplay.
Esse estado de coisas só começou a mudar
com a morte de Marielle. Uma série de casos antigos foi tirada da gaveta em
busca de pistas, e acabaram levando à prisão dos dois matadores. Adriano,
primeiro suspeito, teve a prisão decretada em janeiro de 2019, mas ficou
foragido até ser morto pela polícia da Bahia numa
operação realizada para capturá-lo. Sua participação foi descartada quando se
descobriu que, na hora em que Marielle morreu, ele estava matando outra pessoa
em outro lugar da cidade. Lessa foi preso em 2019, a partir de evidências
encontradas nos arquivos da nuvem de seu celular. Os indícios foram
corroborados pelo testemunho de Élcio, que dirigiu o carro usado no
assassinato. Até agora, porém, não se sabe quem encomendou a morte nem o
porquê.
A investigação sofreu uma série de
obstáculos nesses cinco anos. Uma testemunha foi plantada para desviar o rumo
da apuração, numa ação sobre a qual parecia haver as digitais de setores da
própria polícia do Rio. A tentativa do governo federal de assumir o caso foi
barrada pela Justiça. O Grupo de Combate ao Crime Organizado do Ministério
Público estadual, que tinha obtido avanços importantes, foi desidratado até
sofrer uma renúncia coletiva de promotores, em janeiro passado.
Quando o ministro da Justiça, Flávio Dino,
assumiu o cargo anunciando que a prioridade de sua gestão seria elucidar o
assassinato de Marielle, e escolheu para a superintendência fluminense da PF um
delegado que já tinha investigado a atuação da Civil, vários políticos
fluminenses, incluindo o governador Cláudio
Castro, tentaram impedir a nomeação. Não funcionou. A PF entrou no caso
utilizando uma brecha na lei que permitia ao Ministério da Justiça investigar
crimes que tivessem repercussão internacional e
relação com violações dos direitos humanos. O trabalho que levou à delação de
Élcio Queiroz, portanto, foi feito à revelia da Polícia
Civil.
Nas entrevistas que deram nos últimos dias,
os investigadores sugeriram estar bem próximos de encontrar o mandante da morte
de Marielle. Espera-se que a descoberta leve automaticamente ao motivo.
Marielle não era um alvo típico como os bandidos eliminados em queimas de
arquivo, nem óbvio, porque não combatia diretamente as milícias como vereadora.
O assassinato só continua sem solução
porque decorre do entrelaçamento do jogo do bicho com as milícias, a corrupção
e a violência policial. Hoje esse caldo criminoso inclui também uma lucrativa
sociedade com o tráfico de drogas e de armas, além da contaminação da política
e das instituições. Trata-se do maior problema de segurança pública do Brasil,
nave-mãe de quase todos os outros. A morte de Marielle já abriu uma fissura no
pacto de silêncio e impunidade que mantém ilesos alguns dos maiores chefões do
Brasil. Mas só a sua solução poderá empurrar o país para o caminho da
eliminação.
Um comentário:
Verdade.
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