O Estado de S. Paulo
O Oriente Médio vive uma distensão movida por interesses políticos e econômicos
As atrocidades cometidas pelo Hamas no dia 7
de outubro e a brutal resposta de Israel na Faixa de Gaza mobilizaram a Arábia
Saudita e o Catar para evitar a escalada do conflito e demonstrar o valor
estratégico de sua diplomacia.
A 10 de outubro, apenas três dias depois dos
ataques e tomada dos reféns pelo Hamas, o governo do Catar contactou o dos EUA,
para formarem uma força-tarefa para negociar sua libertação e tréguas nos
combates. O esforço contou com o máximo sigilo, uma equipe muito pequena, e o
acompanhamento constante do presidente Joe Biden e do emir Tamim bin Hamad
alThani. Egito e Israel também foram envolvidos.
No dia seguinte, Riad foi sede de uma reunião
de cúpula extraordinária da Organização de Cooperação Islâmica sobre a situação
em Gaza. Ebrahim Raisi foi convidado, na primeira visita de um presidente
iraniano ao reino saudita em mais de uma década. O príncipe herdeiro saudita,
Mohamed bin Salman (MBS), reuniu-se com ele. Irã e Arábia Saudita são rivais
regionais.
PACTO. De acordo com fontes ouvidas pela Bloomberg, MBS ofereceu investimentos sauditas no Irã, em troca de o regime evitar que as milícias próiranianas no Líbano, Síria, Iraque e Iêmen entrassem na guerra contra Israel. Todos esses grupos intensificaram os ataques contra Israel, mas não em uma escala que pudesse ampliar a guerra.
O Irã está sob sanções de EUA e Europa e
precisa desesperadamente de receitas em moeda forte. Sua maior fonte de
recursos é a China, que compra seu petróleo a um preço abaixo do mercado. A
Rússia emprega drones e foguetes iranianos na agressão contra a Ucrânia, em
troca de alimentos e tecnologia de defesa.
A queda no poder aquisitivo da classe média,
combinada com a repressão crescente, sobretudo contra as mulheres, tem ampliado
o descontentamento e os confrontos com a polícia que abalam a imagem da
teocracia iraniana.
Os dois movimentos, o catariano e o saudita,
levam a marca da ambiguidade. O Catar tem mantido boas relações com o Irã, que
o levaram a ser suspenso entre 2017 e 2021 do Conselho de Cooperação do Golfo,
liderado pela Arábia Saudita.
AJUDA. O emirado tem dado ajuda financeira à
Faixa de Gaza, governada pelo Hamas desde 2007, calculada em US$ 1 bilhão. Eu
mesmo presenciei, em 2014, funcionários palestinos com coletes da agência
catariano de cooperação internacional, avaliando os danos causados pelos
bombardeios israelenses, de modo que o rico emirado pudesse enviar os recursos
para a reconstrução. O líder político do Hamas, Ismail Haniyeh, vive em Doha.
Tudo isso vinha sendo feito em coordenação
com Israel, que precisa de uma válvula de escape para as frustrações dos
palestinos, e de uma ponte de interlocução com o Hamas. Catar e Israel não têm
relações diplomáticas formais, mas há um escritório para assuntos catarianos no
governo israelense. Atletas israelenses participam de eventos esportivos no
Catar. Voos Tel-Aviv-Doha foram criados para a Copa de 2022.
Essas ligações se tornariam problemáticas
depois dos ataques de 7 de outubro. O Catar se moveu rapidamente para
transformá-las num ativo diplomático.
Quando o Hamas acusou Israel de não cumprir
sua parte no acordo que possibilitou a trégua, um avião levando representantes
do governo do Catar pousou sigilosamente no Aeroporto Ben Gurion em Tel-Aviv. O
acordo foi salvo.
Desde 2014, Irã e Arábia Saudita travam uma
guerra por procuração no Iêmen, considerada pela ONU a maior tragédia
humanitária. Estima-se que ela tenha matado 377 mil pessoas: 150 mil
diretamente e o restante de fome e doenças.
MILÍCIAS. O Irã patrocina a milícia dos
houthis, minoria xiita no Iêmen. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos
(EAU) apoiam o governo sunita. O presidente Abd Rabbu Mansour Hadi está exilado
no reino saudita desde 2015.
Em março de 2022, a China mediou uma
aproximação entre Arábia Saudita e Irã, visando à retomada de relações
diplomáticas. No mês seguinte, sauditas e iranianos articularam uma trégua
entre o governo iemenita e a milícia houthi. Hadi aceitou o acordo mediante a
promessa de ajuda humanitária de US$ 3 bilhões. A trégua foi mantida mesmo
depois de expirar o prazo do acordo, em outubro de 2022.
Como parte dessa estratégia, a China trouxe
Irã, Arábia Saudita, EAU e Egito para o Brics, contra a vontade de Brasil e
Índia. A guerra no Iêmen é um constrangimento para os EUA, fornecedores de
armas para Arábia Saudita e EAU. Ao assumir o governo, em 2021, Biden suspendeu
a venda de armas para os dois países, selada por seu antecessor, Donald Trump.
Isso levou à aproximação entre Arábia Saudita e China. Apesar de sua aliança
com o Irã, os chineses negociam a venda de armas à Arábia Saudita e ao Egito,
ambos adversários da teocracia xiita, e rivais entre si.
DIPLOMACIA. Desde o governo Trump, os EUA
realizam um pivô para o Oriente Médio, por meio dos Acordos de Abraão. EAU,
Bahrein, Marrocos e Sudão normalizaram relações com Israel. Agora seria a vez
dos sauditas. O ministro do Turismo de Israel, Haim Katz, visitou Riad no dia
26 de setembro, seguido pelo ministro da Comunicação, Shlomo Karhi, no dia 3 de
outubro.
Quatro dias depois, o Hamas lançou seus ataques, destinados a interromper esse processo. O acordo incluía concessões de Israel para a Autoridade Palestina na Cisjordânia, rival do Hamas. Como se vê, o Oriente Médio vive um momento de distensão, movido por interesses econômicos e geopolíticos. Essa dinâmica se mostra mais forte do que o trauma causado pelas atrocidades do Hamas e pela resposta brutal de Israel.
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