quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Caos no Equador serve de alerta para o Brasil

O Globo

Explosão de violência no país é resultado do fracasso do Estado ao enfrentar crime organizado

O caos institucional imposto ao Equador pelas facções do narcotráfico é um alerta para o Brasil e para outros países que enfrentam o poder desafiador de organizações criminosas transnacionais. As cenas de terror que se espalharam pelo país nos últimos dias expõem de forma didática o que pode acontecer quando o Estado falha no combate ao crime organizado e cede terreno à anomia e à barbárie.

violência, já presente no cotidiano da população equatoriana, explodiu depois do último domingo, quando fugiu da prisão o chefe da facção criminosa Los Choneros, vinculada aos cartéis de drogas do México e da Colômbia. Rebeliões eclodiram nos presídios. Ao menos sete policiais foram sequestrados. Grupos criminosos tomaram universidades e hospitais, disseminando o pânico. Homens encapuzados e armados invadiram um estúdio da TV estatal, promovendo cenas de terror transmitidas ao vivo. Explosões e saques tomaram conta das ruas. Os episódios já deixaram pelo menos 13 mortos.

O descontrole é a primeira crise enfrentada pelo presidente Daniel Noboa, de 36 anos, há menos de dois meses no poder. Depois de decretar estado de exceção, ele declarou conflito armado interno e ordenou às Forças Armadas neutralizar organizações criminosas envolvidas com o narcotráfico (22 foram classificadas como terroristas).

Noboa foi eleito com um discurso de combate ao crime organizado inspirado nas políticas radicais do salvadorenho Nayib Bukele em sua guerra às drogas. Na campanha, chegou a prometer comprar barcos-prisão para confinar líderes de facções no Pacífico, longe da costa. Agora anunciou que erguerá dois presídios de segurança máxima para abrigar os traficantes, despertando protestos em comunidades indígenas afetadas pelas obras. Os fatos lhe impõem um desafio impossível de enfrentar na base do populismo.

A explosão da violência no Equador é recente. Entre 2018 e 2023, o índice de homicídios saltou de 6 para 46 por 100 mil habitantes (no Brasil, foi de 23,3 por 100 mil em 2022). A escalada é influenciada pelas facções criminosas, que disputam espaço na vida pública. Em agosto passado, o candidato à Presidência Fernando Villavicencio, depois de ameaçado pelo líder dos Choneros, foi assassinado a tiros ao deixar um comício numa escola em Quito.

Evidentemente, a realidade do Equador é distinta da brasileira. Mas há semelhanças no modo como as facções agem ao afrontar o Estado por meio do caos e do terror à população. Não se pode ignorar que extensões significativas do território brasileiro, especialmente nas comunidades pobres ou áreas da Amazônia, estão sob controle de bandidos que impõem suas próprias leis. As cadeias são focos de tensão permanente e, muitas vezes, servem de ponto de partida para execuções e ataques violentos ao patrimônio público.

Não se pode transigir com o crime. Sempre que o Estado negligencia seu papel fundamental na segurança pública, a violência explode, pondo em risco a estabilidade e a sobrevivência das instituições. Compreende-se que o combate às organizações do narcotráfico não é tarefa simples. Exige recursos humanos e materiais vultosos, cooperação federativa e políticas permanentes. No Brasil, o governo federal tem resistido a reconhecer sua responsabilidade na questão, empurrando aos estados a missão de combater facções criminosas cujo poder só faz crescer. O Equador deveria servir de alerta.

Desvios no Maranhão mostram como é difícil implantar políticas educacionais

O Globo

Inspeção do tribunal de contas local constatou fraudes de R$ 1,5 bilhão em ensino integral, para jovens e adultos

As deficiências da educação brasileira se tornam mais dramáticas quando recursos que deveriam saná-las se perdem devido à corrupção, à inépcia ou ao desleixo. É o que acontece em municípios do Maranhão, onde verbas do Ministério da Educação destinadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA) e ao ensino em tempo integral vão para o ralo, como mostrou reportagem do Fantástico.

Uma inspeção feita pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) maranhense revelou que, para receber verbas do MEC no ano passado, cidades matricularam cidadãos que já morreram ou criaram turmas em tempo integral que não existem. As fraudes somam, de acordo com o presidente do TCE, Marcelo Tavares, cerca de R$ 1,5 bilhão. Entre 80% e 90% dos casos analisados têm problemas, segundo ele.

A cidade de São José de Ribamar recebeu R$ 32,5 milhões do MEC para manter 21.186 alunos em tempo integral. Pela inspeção do TCE, não mais que 333 passam o dia todo na escola. O prefeito do município, Julio Cesar de Souza Matos, o Dr. Julinho, alegou que a escola tem educação integral, “mas não precisa ter tempo integral”. A prefeitura de Turiaçu informou ter 7.500 alunos estudando em 63 escolas de tempo integral, por isso recebeu R$ 12 milhões do MEC. Os próprios moradores desconhecem a modalidade.

Os números inflados chamaram a atenção do TCE. Cidades-alvo da inspeção informaram ter 16,7% da população adulta matriculada no EJA (a média no país é 0,59%). Em São Bernardo, os nomes de muitos dos alunos estão no registro de óbitos. A cidade recebe cerca de R$ 4 mil por estudante do EJA. Não fosse a inspeção do TCE, não se saberia dessa fraude envolvendo salas de aula do Maranhão.

É evidente o descontrole nas verbas destinadas aos municípios para implantar programas como EJA e ensino em tempo integral, temas sobre os quais o governo federal tem feito propaganda maciça na TV. Compreende-se a dificuldade de fiscalizar verbas públicas nos 5.570 municípios brasileiros, mas algum controle é necessário. Não se pode liberar os recursos e esperar que toda prefeitura aja de boa-fé.

Certamente o descontrole não ocorre só em cidades do Maranhão. Em princípio, prefeituras e gestores que desviam verbas estão sujeitos a punições como multas, devolução do valor desviado e até a inelegibilidade do prefeito. Infelizmente a descoberta e a punição dos envolvidos em irregularidades têm sido exceções no Brasil.

A prática nefasta pune duplamente a população. Primeiro, porque nega-lhe um direito fundamental, num país que luta para melhorar seus indicadores educacionais (enquanto prefeituras recebiam para dar aulas a mortos, uma maranhense de 55 anos, desempregada, disse ao Fantástico que pagava R$ 50 por mês para aprender a ler e escrever). Segundo, porque a conta da corrupção sobra para a própria sociedade, obrigada a pagar por um serviço inexistente. Muito se critica a falta de verba para a educação básica. Como se vê, não é que falte só dinheiro. Faltam fiscalização, gestão e honestidade.

Riscos climáticos passam a ter primazia na agenda de Davos

Valor Econômico

Todos os riscos ambientais figuram entre os cinco maiores em uma década

A elite econômica mundial que se reunirá em Davos a partir do dia 16, no tradicional Fórum Econômico, está pessimista em relação ao futuro nos próximos dois anos e muito mais pessimista ainda em uma década. O Relatório de Riscos Globais, que consultou 1.490 líderes empresariais, acadêmicos, membros de governos e instituições internacionais em 113 países, aponta que riscos econômicos, como inflação e recessão, ainda estão entre os 10 principais fatores no curto prazo - em uma década, nenhum foi citado. Catástrofes climáticas são o principal temor da maioria já em 2024 e estão entre quatro dos cinco principais riscos em 2034.

A principal conclusão do relatório é que o mundo encontra-se em um ponto de inflexão, conduzido por mudanças estruturais, como a aceleração tecnológica, com a emergência da inteligência artificial, demográfica, climática, econômica (a fragmentação da produção após décadas de globalização) e políticas, como uma nova ordem multipolar e a propagação de fake news e desinformação, uma arma eleitoral e social de grande poder destrutivo. Muitos desses desafios teriam de ser enfrentados urgentemente por meio da cooperação global, mas o cisma entre EUA e China, guerras no Oriente Médio e em solo europeu (Ucrânia), tornam essa tarefa muito mais difícil do que normalmente é.

A inflação caiu na maioria dos países e a temida recessão não ocorreu, mas esses dois riscos ocupam lugar importante nos próximos dois anos. O motivo é que a inflação ainda não chegou ao nível desejado pelos bancos centrais, o que pode demorar mais do que o previsto, obrigando as taxas de juros a ficar mais altas por mais tempo. O resultado seria um dano econômico maior, possivelmente uma recessão. Os maiores riscos percebidos já para este ano estão em outro lugar e são, pela ordem, condições climáticas extremas, desinformação gerada por Inteligência Artificial, e a polarização política. Na sequência estão crise de custo de vida e ataques cibernéticos.

O ano mais quente da Terra em 100 mil anos, com ondas de calor, secas, incêndios e inundações, levaram os líderes consultados a imaginar que 2024 terá uma sequência dos eventos do ano passado. Já a desinformação e a polarização política, fenômenos correlacionados, são especialmente importantes quando o calendário eleitoral mundial mostra que 3 bilhões de pessoas irão votar este ano - EUA, Índia, Indonésia, Taiwan, Rússia etc -, ou 46% da população global, a maior parcela em um ano desde 1800 (Ruchir Sharma, FT, 4-1).

A propagação de informações distorcidas ou claramente fabricadas pode mudar os rumos das eleições programadas, aponta o relatório, e criar uma desconfiança generalizada, atingindo a mídia tradicional como fonte confiável. A preocupação com o tema não vai em uma só direção. “Há o risco de repressão e erosão de direitos quando as autoridades procuram debelar a proliferação de informações falsas, como também há riscos decorrentes da inação”, registra o relatório. Nicarágua e Irã são exemplos do primeiro caso. Ainda que não seja o risco mais apontado no ranking, a desinformação é tida pelos consultados como o mais grave.

Segundo a pesquisa, a próxima década “esticará ao máximo a capacidade de adaptação” da humanidade. Quase dois terços dos líderes ouvidos (63%) consideram o período “turbulento ou tempestuoso”, com um grande risco de catástrofes globais. Todos os riscos ambientais figuram entre os cinco maiores. Encabeçam a lista eventos climáticos ainda mais severos, perdas de biodiversidade e colapso de ecossistemas, mudança crítica dos sistemas ecológicos da Terra e escassez de recursos naturais. O relatório aponta que sinais antecipados de alerta sugerem, por exemplo, que a Floresta Amazônica perde resiliência e que “alguns limiares críticos podem já ter sido ultrapassados”. Há maior temor dos líderes empresariais do que de governos e da sociedade civil sobre as mudanças climáticas, uma dissonância indicativa de que “o tempo de agir pode passar logo sem que tenha havido suficiente progresso”.

Resultados adversos da Inteligência Artificial vêm logo depois da desinformação, com destaque. A lista do que pode dar errado é grande: a concentração do mercado e objetivos de segurança nacional podem constranger o desenvolvimento da tecnologia. Ela pode criar nova segregação entre os que são capazes de produzir e acessar a tecnologia, ou patenteá-la e os que não podem, ampliando a distância entre nações ricas e o resto do mundo. Seu uso em decisões de conflitos bélicos pode criar escaladas indesejadas, assim como empoderar grupos radicais de toda sorte. Um grande problema é que o desenvolvimento da IA é muito maior do que a capacidade de compreendê-la e regulá-la. A saída seria integrar seu conhecimento à educação pública e treinar governos e políticos a identificar fontes confiáveis de informação para abastecer a IA, além da regulação.

O relatório só detalha os riscos por país em 2024. No caso do Brasil, o enfoque é estreito e econômico, de uma agenda conhecida: recessão, inflação, dívida pública, desigualdade e censura (em relação à regulação de desinformação).

Equador em chamas

Folha de S. Paulo

País vive terror com disputas do narcotráfico, efeito nefasto da guerra à droga

A consequência mais nefasta da guerra às drogas foi a criação de megacartéis do narcotráfico que disputam o domínio do mercado por meio da violência armada.

Assim o evidencia a violência que grassa na América Latina —e o terror que assola o Equador nos últimos dias. A fuga de Adolfo Macías, conhecido como Fito e líder da facção criminosa Los Choneros, gerou uma série de rebeliões em presídios, levando o recém-empossado presidente Daniel Noboa a declarar estado de exceção de 60 dias.

A partir daí, uma reação criminosa com bombas e sequestros deixou ao menos dez mortos. Na terça (9), Noboa assinou decreto que aponta a existência de um "conflito armado interno" e autoriza operações militares do Exército.

O estopim da crise, a fuga de Fito, está inserido em um contexto mais complexo, que envolve a reconfiguração das disputas pelo mercado de drogas na região.

Em 2016, o então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, firmou acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias (Farc), grupo guerrilheiro marxista surgido nos anos 1960 que, com o tempo, associou-se ao narcotráfico.

As Farc praticamente dominavam a produção de cocaína ao sul do país e as rotas de escoamento até os portos do Equador, de onde o produto rumava a México, EUA e Europa. Com o acordo de Santos, o grupo desmantelou-se —parte seguiu para a política e parte formou facções dissidentes que passaram a disputar o vácuo de poder e se espalhar por países vizinhos.

A isso somou-se o incremento da atuação de cartéis mexicanos rivais que já operavam no Equador, mas de modo discreto, como os de Sinaloa e de Jalisco Nueva Generación. Facções equatorianas passaram a trabalhar para esses carteis, intensificando os embates —o grupo de Fito, por exemplo, é um braço do cartel de Sinaloa.

A Pesquisa de Conflitos Armados, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos do Reino Unido, aponta que a taxa de homicídios no Equador escalou de 6 por 100 mil habitantes em 2016, ano do acordo com as Farc, para 26/100 mil em 2022. Nos presídios, as mortes violentas saltaram de 32 em 2019 para 323 em 2021.

Maior país da América Latina, o Brasil também vive os impactos das disputas do narcotráfico na forma de taxas elevadas de assassinatos.

Os países da região precisam rever suas políticas sobre drogas, buscando ações interdisciplinares alternativas à penalização e ao proibicionismo, que até agora só obtiveram como resultado a escalada do crime e da violência.

Alckmin de Boulos

Folha de S. Paulo

Lula traz Marta para moderar chapa; é incerto se ação vai além do uso eleitoral

Se levada a sério a versão petista de que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe, Marta Suplicy, que agora retorna ao partido, esteve entre os golpistas de 2016.

Entretanto essa reviravolta não chega a causar espanto, dado que outro apoiador da deposição da ex-presidente, Geraldo Alckmin (PSB e ex-arquirrival tucano), hoje é nada menos que o vice de Luiz Inácio Lula da Silva.

Com o convite a Marta para compor a chapa de Guilherme Boulos (PSOL) na disputa pela prefeitura paulistana, Lula repete com o aliado o movimento que já fez mais de uma vez para suavizar a própria imagem e atrair eleitores moderados. Nessas ocasiões, o cálculo do cacique sempre prevalece sobre a cantilena dos liderados.

Boulos, que despontou na vida pública como apoiador de invasões de imóveis urbanos no Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), tornou-se a principal esperança da esquerda para retomar o comando da maior metrópole do país —cujo eleitorado, nos últimos dois pleitos, preferiu opções entre o centro e a direita.

Derrotado no segundo turno em 2020 e hoje deputado federal, ele tem se esforçado em evitar mostras de radicalismo. Nem sempre o faz de forma convincente, porém.

Mais recentemente, desgastou-se ao hesitar na condenação do Hamas pelo ataque terrorista a Israel, o que o levou a fazer um segundo discurso na Câmara para retificar seu posicionamento. Também teve de deixar de lado a defesa pública das greves de metroviários que atormentaram São Paulo.

Com origem na elite paulistana, passagem pelo MDB e, até terça (9), participação na gestão do prefeito emedebista Ricardo Nunes, Marta Suplicy proporciona o contraste planejado por Lula. Ademais, ex-ministra e ex-prefeita com aprovação em redutos relevantes da cidade, junta à chapa experiência administrativa que falta a Boulos.

Não há como prever o quanto isso resultará em votos, mas parece lógico supor que o candidato do PSOL pouco ou nada ganharia com um vice de perfil similar ao seu.

Mais incerto ainda —e mais importante— é o que a adesão poderá significar em termos programáticos. A busca por moderação e novas ideias se estenderá, em caso de vitória, às ações da prefeitura?

Nem o governo Lula oferece até aqui resposta clara a essa questão. O presidente demonstra compreender seus limites políticos e a necessidade de negociação com outras forças, mas iniciativas suas e a conduta de seu partido revelam o apego a teses que já deveriam ter sido sepultadas pelo aprendizado.

Um ano sem intervenções no câmbio

O Estado de S. Paulo

Autonomia formal do BC permitiu à instituição retomar o controle da inflação por meio da taxa básica de juros, sem ter de recorrer a intervenções cambiais para conter expectativas

No ano passado, o Banco Central (BC) não realizou intervenções no mercado cambial. Pode parecer algo normal, mas foi a primeira vez que isso ocorreu desde 1999, quando o País adotou o regime de câmbio flutuante. A informação foi revelada pelo Valor, com base no cruzamento de dados sobre a atuação da autoridade no mercado de câmbio e os comunicados divulgados pela instituição.

Excetuando-se os leilões de rolagem que já estavam previstos no cronograma do BC, não houve, ao longo de todo o ano de 2023, anúncios de contratos de swap cambial, compra ou venda de dólares à vista ou novos leilões de linha, ou seja, de venda de dólares com compromisso de recompra.

Como mostrou o jornal, há boas razões para justificar esse comportamento. O BC explicou não ter identificado disfuncionalidades que justificassem uma intervenção. De fato, o saldo comercial positivo, em razão das exportações de commodities, ocasionou um forte fluxo de entrada da moeda norte-americana, e o dólar, embora saído de R$ 5,27 no início do ano para R$ 4,85 no fim de 2023, apresentou baixa volatilidade.

O histórico de atuação do BC no mercado cambial mostra o quanto momentos como este são raros e, por isso mesmo, devem ser compreendidos e celebrados. Em alguns períodos dos últimos 25 anos, chegou-se a contar as intervenções na casa das centenas, como em 2014, auge da série, com 492 ações, a maioria swaps cambiais para conter a desvalorização do real ante o dólar.

À época, no cenário externo, o dólar ganhava força com a perspectiva de aumento dos juros norte-americanos; internamente, havia uma percepção de piora das condições fiscais. O BC, no entanto, mantinha os juros inalterados desde abril, e só elevou a Selic em outubro, decisão que surpreendeu o mercado e alimentou rumores sobre a interferência do governo na instituição. Fazia apenas três dias que a presidente Dilma Rousseff havia sido reeleita.

A título de comparação, em 2022, também um ano eleitoral, o BC só interrompeu o ciclo de alta dos juros em setembro, dando fim a um ciclo de 12 aumentos consecutivos que havia sido iniciado em março de 2021. Naquele ano, a autoridade monetária realizou 14 intervenções cambiais – o segundo menor número desde 1999.

É evidente que há muitas outras condições a serem consideradas para fazer uma avaliação sobre o trabalho do Banco Central nesses dois períodos. Mas há uma, em especial, que não pode ser desconsiderada: a autonomia do BC, em vigor desde fevereiro de 2021.

A autonomia formal deu força para o BC combater a inflação, objetivo que é sua função precípua. E, para fazê-lo, a principal e melhor arma à mão da autoridade monetária é a taxa básica de juros. A Selic elevada, por óbvio, também contribuiu para aumentar o diferencial de juros e para atrair capital estrangeiro para o País.

Além da Selic, os leilões que o BC faz no mercado cambial também podem ser usados como um instrumento para conter as expectativas – e, como era muito comum no passado, para tentar impedir o aumento da inflação. Assim, se o BC não recorreu a eles, é também porque foi muito bem-sucedido ao conter a inflação e trazê-la de volta à meta.

Mesmo na área fiscal, uma das principais áreas consideradas pelo BC no acompanhamento da inflação, os riscos foram menores do que o esperado. A aliança entre o Congresso e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, abriu caminho para a aprovação do arcabouço fiscal, da reforma tributária e de todas as medidas que o ministro defendia para recuperar receitas.

Esses riscos poderiam ser ainda menores, não fossem os discursos do presidente Lula da Silva contra a responsabilidade fiscal e o boicote de parte da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) à agenda do ministro Haddad.

Nem os membros do PT nem Lula da Silva vão admitir, mas a retomada do controle da inflação e a estabilidade cambial não teriam sido alcançadas se o BC não tivesse tido condições de atuar de forma livre, ignorando a pressão do governo pela redução forçada da taxa básica de juros. E isso é consequência da autonomia formal conquistada pelo Banco Central.

Equador em estado de exceção permanente

O Estado de S. Paulo

Para enfrentar as organizações do narcotráfico que aterrorizam os cidadãos, o governo equatoriano decreta estado de exceção pela 42.ª vez, e o país parece às portas de uma guerra civil

O governo do Equador suspendeu no último dia 8 as garantias constitucionais de seus cidadãos por 60 dias e escalou as Forças Armadas para o combate a mais de duas dezenas de facções do narcotráfico. Considerando-se que se trata do 42.º decreto de estado de exceção baixado pelo Poder Executivo em nome da repressão às organizações criminosas que parecem tomar conta do país desde 2019, pode-se dizer que a exceção virou regra.

O recurso a esse instrumento extraordinário, que se provou 41 vezes inócuo, indica a total falência do Estado em sua missão de providenciar segurança e salvaguardar a democracia. Enquanto o governo equatoriano recorria aos velhos instrumentos de sempre, as gangues deflagravam uma onda de terror para desafiar as instituições do país.

Desde terça-feira, o Equador parece às portas de uma guerra civil. A situação foi consumada pelo presidente Daniel Noboa, que decretou estado de “conflito armado interno” e a aplicação do direito internacional humanitário no país. Até a edição do ato, pelo menos dez pessoas haviam sido mortas em tiroteios e explosões de carros-bomba, e os líderes das duas principais máfias tinham escapado de presídios de segurança máxima. No mesmo dia, funcionários da emissora de televisão TC, de Guayaquil, foram subjugados por integrantes de uma das facções no momento em que faziam uma transmissão ao vivo, e as salas de aula da universidade local foram invadidas por integrantes de outro grupo armado.

A sociedade equatoriana é refém há pelo menos seis anos do crime organizado e da violência que esses grupos promovem dentro e fora dos presídios. Igualmente, vê-se coagida pelas recorrentes suspensões de seus direitos constitucionais por governos de diferentes matizes ideológicos. Noboa repete mais uma vez a perigosa fórmula de desgastar a democracia equatoriana sem ter como garantir que o regime de liberdade sairá íntegro ao final do processo.

A rápida degradação da segurança pública no Equador obviamente preocupa os organismos multilaterais, os vizinhos sul-americanos e os Estados Unidos. Mas essa preocupação ainda não se traduziu em apoio e cooperação. Desde a expulsão da base militar dos Estados Unidos na região portuária de Manta em 2009, no governo do chavista Rafael Correa, o destino do Equador como paraíso do narcotráfico estava delineado. Nessas condições, o país ofereceu às gangues os portos para escoar as drogas, as autoridades permeáveis à corrupção e as forças policiais e militares frágeis. Como se previa, seu território mostrou ser terreno fértil para as facções que estavam enfrentando problemas com a repressão na Colômbia, além dos cartéis mexicanos e albaneses.

Em pouco mais de seis anos, o país deixou de ser uma ilha de relativa tranquilidade na América do Sul para exibir indicadores de violência similares aos de países da América Central – assolados por bandos de narcotraficantes e por milícias há muito mais tempo. No ano passado, a execução do então candidato a presidente Fernando Villavicencio após um evento de sua campanha chamou a atenção para a desenvoltura do crime organizado.

Daniel Noboa, de centro-direita, pouco tratou de segurança pública durante a disputa eleitoral. Mas logo após sua posse, em novembro, anunciou um plano de combate ao narcotráfico que previa a construção de mais dois presídios de segurança máxima e a instalação de navios-prisões – ideias importadas de El Salvador, onde vigora tolerância zero contra supostos criminosos, mesmo que isso signifique a prisão de inocentes aos borbotões. O projeto de Noboa envolveu o afastamento de juízes, procuradores, policiais e agentes penitenciários suspeitos de terem se deixado aliciar pelos cartéis. Desse modo, o presidente se expôs como alvo número um do crime organizado.

Entretanto, ao valer-se de mais um decreto de exceção, Noboa tira dos equatorianos seus direitos constitucionais básicos e os expõe à mira também das Forças Armadas – como se já não bastasse a ação das máfias.

O aniversário do caso Americanas

O Estado de S. Paulo

Um ano após revelação de rombo bilionário, pouco se sabe sobre a dinâmica do escândalo

Um ano transcorreu desde que a revelação de “inconsistências contábeis” nas demonstrações financeiras – eufemismo usado à época para descrever a adulteração de balanços – colocou a Americanas

S.A. no centro de um dos maiores escândalos da história corporativa brasileira. Naquele 11 de janeiro, o rombo foi estimado em R$ 20 bilhões, cálculo que pulou depois para R$ 40 bilhões.

A dimensão exata do prejuízo, porém, não é conhecida, já que a empresa não publicou nenhum balanço trimestral ao longo de 2023. Por isso, encabeça a lista de inadimplentes na entrega de documentos à Comissão de Valores Mobiliários (CVM). No órgão fiscalizador do mercado de capitais foram abertos inquéritos administrativos, processos sancionadores e 21 procedimentos de análise. Mas, até agora, quase nada veio a público sobre a mecânica do que a própria empresa classificou de fraude continuada por, ao menos, dez anos.

Uma indefinição que afeta diretamente a confiança do investidor financeiro no País. Por óbvio, investigações de irregularidades dessa monta precisam ser guiadas por cuidado e sensatez. Mas são necessárias medidas ágeis para impedir manipulações do mesmo tipo. O amplo conhecimento do que possibilitou as tais inconsistências e as providências para evitar novos casos é o mínimo que a sociedade espera dos organismos de regulação e fiscalização.

Tome-se como exemplo o caso Enron, a gigante norte-americana de energia dos anos 1990 que começou a ser investigada em meados de 2001 pela SEC (Securities and Exchange Commission, equivalente à CVM nos Estados Unidos) por fraudes contábeis. Em janeiro do ano seguinte, as ações da Enron foram retiradas da Bolsa de Nova York. Em julho do mesmo ano foi promulgada a Lei Sarbanes-Oxley, que mudou padrões de governança corporativa e de contabilidade e passou a ser seguida em todo o mundo como garantia de bons mecanismos de auditoria e mitigação de riscos.

A condenação dos responsáveis veio somente quatro anos depois, com executivos sentenciados à prisão. Durante a investigação, ainda em 2002, a empresa de auditoria Arthur Andersen, então uma das maiores do mundo, renunciou às atividades. Estava clara sua participação na fraude ao longo de anos. Respeitadas as devidas proporções, parecem casos muito semelhantes.

Pelo que se sabe até agora, a origem do escândalo Americanas está na contabilização irregular de suas dívidas, que inflou artificialmente seus resultados. Falseou nos balanços o saldo de operações de “risco sacado”, nas quais os bancos antecipam, com cobrança de juros, o pagamento a fornecedores. Uma prática que, soube-se depois, é comum no comércio. Mais um motivo para agir com celeridade no processo.

Somente no fim do ano passado a Americanas foi suspensa temporariamente do Novo Mercado, o mais alto padrão de governança da B3. Uma nova norma contábil para “risco sacado” está prevista para este ano. A CPI da Câmara sobre o caso Americanas foi encerrada alegando impossibilidade de apontar culpados.

E até agora ainda não há um detalhamento do que de fato ocorreu, para evitar que casos assim se repitam.

Ação em defesa dos Yanomami

Correio Braziliense

Governo federal muda a tática de enfrentamento às ações desastrosas de garimpeiros e madereiros no território indígena. A presença de militares e policiais federais será permamente

O Brasil não pode ser vencido pelo garimpo ilegal, pela queima e pelo desmatamento criminosos da Amazônia, muito menos admitir que haja recorrentes chacinas de indivíduos dos povos originários e tradicionais. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em reunião ministerial nesta terça-feira, anunciou a decisão de manter militares e agentes da Polícia Federal, por prazo indeterminado, na Terra Indígena Yanomami, para garantir não só o patrimônio natural, mas, sobretudo, a integridade física desse povo, alvo recorrente das agressões de garimpeiros e desmatadores, invasores daquele território.

"Não podemos perder a guerra contra o garimpo ilegal", afirmou o presidente. Para garantir os meios necessários à proteção do povo Yanomami, será destinado R$ 1,2 bilhão, a fim de que agentes federais e militares se mantenham permanentemente na região. O objetivo é evitar que os intrusos retirados da terra indígena retornem, como vem ocorrendo a cada final das operações.

Os garimpeiros voltam com novos equipamentos e armas, destruindo o meio ambiente, contaminando nascentes e cursos d'água com mercúrio — elemento extremamente danoso à saúde humana. Espalham doenças entre os indígenas, violentam sexualmente mulheres e adolescentes, e matam jovens e homens, certos de que estão blindados pela impunidade.

Há algum tempo, a Polícia Federal identificou que as invasões são patrocinadas por organizações criminosas instaladas no Sudeste, como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), o mais forte, com ramificações na maioria dos estados e conexões internacionais. Na região, entretanto, há outros grupos: Família do Norte (FDN), Terceiro Comando Puro (TCP) e Crias da Tríplice.

A decisão do governo federal cumpre a determinação do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, ante o agravamento da crise sanitária na região. O ministro estabeleceu prazo de três meses para o Executivo federal garantir atendimento à saúde do povo Yanomami. Em janeiro de 2022, o Brasil e o mundo se depararam com um cenário de horror na TI Yanomami. A comunidade estava famélica, mais de 500 crianças haviam morrido, além de idosos, mulheres e jovens, vítimas da fome e das doenças disseminadas pelos invasores. A tragédia se arrastava havia meses, sob a indiferença do então governo. Pelo contrário, o poder público havia aberto as porteiras à invasão das hordas de garimpeiros para a extração ilegal de minérios.

Agora, o plano do governo federal é colocar a máquina do Estado em defesa dos povos originários. Essa máquina, no entanto, não pode se movimentar só em favor dos Yanomami. É necessário que ela se mova também em direção aos demais povos originários oprimidos em todas as regiões do país, fortalecendo as políticas públicas para os povos originários e tradicionais. Não faltam exemplos de opressão e violência contra as comunidades minoritárias em todas as cinco regiões do país.

Dentro do Legislativo, prevalece o entendimento de que "há terras demais" em poder dos indígenas. Uma compreensão equivocada, que ignora a importância desses povos para a preservação do patrimônio ambiental, bem como seus saberes, com largos e desconhecidos benefícios à sociedade. Há parlamentares que não veem os indígenas como ancestrais natos da formação do povo brasileiro, e os tratam como se invasores fossem, invertendo a ordem dos primeiros ocupantes do solo nacional. Eles estavam aqui antes da chegada dos colonizadores.

Mas essa ordem foi subvertida. A aprovação do Marco Temporal é uma das maiores agressões aos direitos dos povos originários, cujos territórios, se totalmente demarcados, ocupariam menos de 15% da extensão do país. Desde a promulgação da Constituição de 1988, que fixou prazo de cinco anos para a definição territorial das 725 reservas indígenas, só 487 foram homologadas, segundo o Instituto Socioambiental (ISA). A inépcia dos sucessivos governos é uma das causas dos conflitos entre povos originários e os não indígenas. É preciso dar um basta às agressões de ambos os lados, a fim de que haja respeito e paz entre os grupos que dão pluralidade étnica-cultural à sociedade brasileira.


 

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