Folha de S. Paulo
Mais que um exercício de memória,
relembrar 1964 é um ato de vigilância para reafirmar nosso compromisso com as
instituições e as liberdades
Este dia
31 de março é diferente de todos os outros que o precederam desde
1964, quando o golpe civil-militar mergulhou o país numa ditadura que
durou 21 anos. A distinção está na inédita perspectiva, aberta pela decisão do
Supremo Tribunal Federal, na última quarta (26), de que deverão
responder criminalmente os que engendraram, patrocinaram e
incentivaram os ataques à democracia que culminaram na recidiva
golpista de 8 de janeiro de 2023.
É a primeira vez que militares de alta patente, um ex-presidente e outros figurões da República se tornam réus por atentarem contra a liberdade e a democracia. A impunidade que eximiu de responsabilidade os agentes do Estado que comandaram ou cometeram atrocidades durante a ditadura militar deixou sequelas profundas no país. Seu legado de autoritarismo e barbárie permanece uma ferida aberta.
Imaginemos o que teria acontecido com o
Brasil se o 8 de janeiro de 2023 não tivesse sido repelido. O retrocesso não se
restringiria à substituição do governo eleito por uma junta de tiranos. Seus
efeitos atingiriam os direitos civis básicos, a liberdade de imprensa, a
cultura, a educação, o acesso à saúde, os direitos trabalhistas, a segurança
das minorias.
O isolamento internacional prejudicaria
enormemente a economia do país. Nessa distopia autoritária, a junta golpista
de Jair
Bolsonaro e aliados avançaria sobre o Parlamento, dissolvendo o
Congresso Nacional. O STF seria
esvaziado, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), manipulado.
Opositores seriam destituídos, perseguidos e presos.
A censura se espalharia com rapidez sob um
"gabinete do ódio" oficial. Veículos de imprensa seriam fechados,
jornalistas e comunicadores amordaçados e incriminados. Organizações de defesa
dos direitos humanos seriam atacadas. As polícias ganhariam ainda mais chancela
institucional para reprimir vozes dissonantes e manifestações. Movimentos
sociais seriam enquadrados como "terroristas" e seus líderes, presos
sem julgamento. Aparelhos de repressão e confinamento seriam remontados. A brutalidade
desgovernada dos "homens da lei" reincidiria covardemente sobre os
alvos de sempre, dos jovens negros das periferias às minorias LGBTQIA+.
O desprezo pela emergência climática e a
exploração irresponsável dos recursos naturais impactaria de maneira desastrosa
os biomas brasileiros, em especial a Amazônia, comprometendo a biodiversidade,
a preservação de rios e florestas e a sobrevivência dos povos indígenas e
ribeirinhos. O negacionismo científico, como ficou claro na investida
antivacina do governo Bolsonaro durante a pandemia de
Covid-19, provocaria milhares de mortes evitáveis.
Ao rememorar
1964, alertamos para a permanência dos riscos do autoritarismo. Os atos de
8 de janeiro não devem ser passíveis
de anistia. Anistiar tais atos seria um desrespeito à memória daqueles que
lutaram contra o autoritarismo e um perigoso incentivo a futuros ataques ao
sistema democrático.
Organismos internacionais como a ONU e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos já afirmaram que o instituto da anistia deve
servir como instrumento de reconciliação em contextos autoritários ou
ditatoriais, sem jamais incluir violações aos direitos humanos e crimes contra
a humanidade —como torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados.
O Supremo Tribunal Federal, ao reabrir o
debate sobre a lei, considerando a sua não aplicabilidade diante de crimes
contra a humanidade, como no caso dos militares acusados pela morte do
ex-deputado Rubens Paiva, demonstra a urgência, a complexidade da questão e a
necessidade de enfim superarmos um passado de impunidade.
A reinterpretação
da Lei da Anistia e a responsabilização dos golpistas do presente são
condições essenciais para que o Brasil encare os desafios do futuro. Relembrar
1964, mais que um exercício de memória, é um ato de vigilância para reafirmar
nosso compromisso inabalável com as instituições e as liberdades democráticas.
Ditadura nunca mais!
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