CartaCapital
O Congresso Nacional não pode outorgar para si próprio a condição de guardião máximo da nossa Constituição
A Câmara dos Deputados, na sessão
deliberativa realizada em 7 de maio de 2025, decidiu sustar uma ação penal em
curso no Supremo Tribunal Federal. O processo foi instaurado após o recebimento
de uma denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente da
República Jair
Bolsonaro e outros 33 acusados pelos crimes de organização criminosa
armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado,
dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
O dispositivo adotado para tanto foi o parágrafo 3º do artigo 53 da Constituição, o qual prevê que, recebida a denúncia contra um senador ou deputado por crime ocorrido após a diplomação, o STF dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.
Ocorre que, ao contrário de salvaguardar o
exercício da função pública parlamentar, a Câmara pretendia beneficiar
terceiros a ela estranhos. Reconhecendo a manobra, o Supremo deliberou no
sentido de que a sustação só poderia beneficiar o deputado federal Alexandre Ramagem
e, ainda, apenas para os crimes que teriam ocorrido após sua diplomação.
Ou seja, foi suspensa a tramitação da ação
penal em face do parlamentar e em relação aos crimes de dano qualificado por
violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e deterioração de bem
tombado. Já as acusações por tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolir
o Estado Democrático de Direito e organização criminosa continuam tramitando
normalmente.
Rememoremos que Bolsonaro proliferou
desinformações quanto ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas. Além disso,
o ex-presidente jamais reconheceu a vitória do presidente Lula nas eleições e
estimulou atos antidemocráticos em frente aos quartéis. Não podemos nos
esquecer ainda da ruidosa atuação da Polícia Rodoviária Federal com o intuito
de impedir o exercício do direito ao voto, dos atos de terrorismo no Aeroporto
Internacional de Brasília, em dezembro de 2022, e do fatídico 8 de Janeiro de
2023, ocasião em que símbolos dos poderes constituídos da República foram, sem
precedentes na história brasileira, desafiados.
Se antes a palavra “golpe” pudesse, no âmbito
das ciências humanas em geral, significar uma reprovabilidade do jargão
político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de
um crime contra as instituições democráticas: “golpe de Estado”, com todos os
elementos do tipo constantes do artigo 359-M do Código Penal.
A gradual fragilização dos espaços e dos
sentidos da democracia, bem como da relação de pertencimento à sociedade,
ocorreu através de específicos artifícios enfraquecedores do pacto
civilizatório e das instituições democráticas. Entretanto, para além de mera
estratégia política de reprodução e dissipação, o bolsonarismo foi muito além.
Esses atos atingiram diretamente o coração do Estado Democrático de Direito.
Nesse cenário, a previsão constante no
parágrafo 3º do artigo 53 da Constituição incide para, em benefício da função
pública e não da pessoa individualmente considerada, salvaguardar a atividade
parlamentar. Não se trata de um privilégio ou de uma benesse individual, mas de
uma garantia atrelada à função.
Subvertendo a lógica constitucional, o
Congresso Nacional não pode outorgar para si próprio a condição de guardião
máximo da Constituição em face de terceiros estranhos à atividade parlamentar.
Não se pode, a pretexto de salvaguardar a função pública, deslegitimar a
atividade do Supremo perante o mais severo desafio imposto à democracia
brasileira em sua história recente.
Se, de um lado, a realização do Estado
constitucional implica a preservação da esfera de livre decisão política do
legislador, ela obriga a conformidade com a Constituição. É no espaço de tensão
entre esses dois princípios que a análise da constitucionalidade da anistia
deve ocorrer.
Ao Legislativo não compete a determinação dos
limites, bem como a extensão e o alcance, da nossa Constituição, substituindo o
STF em seu papel de intérprete final e guardião máximo. As garantias
parlamentares não podem ser utilizadas como meio de esvaziamento da atividade
jurisdicional suprema. Por todas essas razões, o Supremo, acertadamente, fez
prevalecer a vontade da Constituição em face da maioria parlamentar ocasional,
a qual não pode, em hipótese alguma, subverter o pacto constitucional. •
Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital,
em 28 de maio de 2025.
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