sábado, 24 de maio de 2025

Zé da Grota e outras histórias, um livro arrebatador – Ivan Alves Filho*

Eu sou apenas um leitor. O que eu quero dizer com isso? Eu aprecio os livros, mas não tenho formação de crítico literário. Nem de longe. Sou um historiador que gosta de ler. Somente isso. Nada muito especial conforme se pode ver.

Contudo, vou ousar um pouco e tecer algumas observações a respeito de um livro que li de uma tacada só, como se diz. Trata-se de Zé da Grota e outras histórias, de Sáulo José Alves.

A obra é um documento social, descrevendo a vida rural brasileira de forma simplesmente magistral. Raramente li um livro tão prazeroso, de trama tão bem conduzida. Um livro cuidadoso, eu diria até. Um cuidado que se estende à maneira de contar, com um domínio absoluto da arte da escrita. Uma combinação rara entre a linguagem interna – ou a forma como a história é contada – e aquilo que é mostrado por essa mesma linguagem nas páginas do livro, o que chamamos de conteúdo. O como e o quê totalmente entrelaçados. Ou a forma não é o conteúdo da Arte?  

Como tantos outros brasileiros, tenho origem rural. Um pé na roça, como se dizia antigamente. Quando eu nasci, no início da década de 50, um brasileiro em cada dez vivia no campo. Minha mãe nasceu em uma fazenda, em Carangola, na Zona da Mata de Minas Gerais, em 1922, em uma família de lavradores. Seus avós plantavam goiaba para fazer doce no tacho. Também cultivavam café. Por parte de pai, um setor da família era do Norte Fluminense e outro da entrada da região missioneira, no Rio Grande do Sul. Como dizia minha avó paterna, “uma gente peleadora, de faca na bota”.

O campo brasileiro era assim, por vezes rude, por momentos muito austero, mas extremamente verdadeiro sempre. E belo como um copo de ouro, se me permitem recorrer a uma imagem de João Guimarães Rosa.

Zé da Grota e outras histórias nos remete a outro grande livro: Vidas secas, de Graciliano Ramos, também ele uma sucessão de contos de tal maneira entrelaçados que adquire uma feição de romance. Pouco importa, no fundo: histórias não deixam de ser histórias pelo fato de serem mais ou menos longas. Ou de terem poucas ou muitas páginas. A função das histórias, nunca é demais lembrar, é outra. Ela atua no plano qualitativo e devem nos fazer sonhar. E eu não conheço nada mais envolvente do que o sonho, essa imaginação que liberta, esse voo fora das asas.  

Lendo este livro de Sáulo José Alves eu reforço a minha opinião de que a sociedade é maior do que o Estado. É ela que produz Cultura, que gera as riquezas materiais também - riquezas que o Estado tende a distribuir tão mal. Como tenho escrito vez por outra, quase ninguém sabe quem mandava e desmandava em nosso país quando eclodiu a epopeia do Quilombo dos Palmares, em Alagoas atual. Mas todos sabemos quem foi Zumbi. Qual o nome do governante espanhol ou português, pouco importa, que reprimiu a ferro e fogo a belíssima experiência dos jesuítas e dos guaranis na região das Missões? Ninguém sabe ao certo. Mas todos nós conhecemos Sepé Tiaraju, o bravo líder indígena. E quem foi mesmo que ordenou a repressão aos Conjurados de Minas Gerais, em 1789?  Quase todos nós ignoramos seu nome. Mas não há quem desconheça Tiradentes, Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Aleijadinho e outros grandes da época. Só para encerrar: quem presidiu a República quando ocorreu o levante do Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, dando início à chamada Coluna Prestes? Talvez seja irrelevante hoje. Mas todos nós respeitamos a figura de Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança.  

Com a Cultura ocorre algo semelhante. Ou seja, ela se inscreve na pele da sociedade, muitas vezes até como uma dolorosa cicatriz, revelando suas mazelas e sofrendo perseguições. Nada revela mais o que de fato somos quanto a Literatura que escrevemos. Alguém já se referiu ao fato de que antes de surgir a Itália havia a Literatura italiana. No Brasil fomos quase além disso: antes de surgir o próprio Estado nacional, em 1822, já tínhamos um sentimento de brasilidade formado, devido à literatura de Gonzaga e Cláudio Manoel, à pintura de Ataíde, aos frontispícios ondulados de Aleijadinho.

É aqui que eu desejo chegar: o livro de Sáulo José Alves se inscreve nessa tradição que faz coexistir o erudito e o popular, o moderno e o tradicional, a reflexão e a participação, as diferentes matrizes culturais também. Escrevi uma vez que autóctone no Brasil é a síntese, a mescla. A nossa cultura é como uma árvore de tronco antigo e galhos novos. Afinal, a língua portuguesa possui 800 anos. Os mitos indígenas, alguns milhares de anos. O mesmo podemos dizer dos nossos orixás. A síntese (isto é, os galhos) é que é nova, propriamente. Zé da Grota e outras histórias carrega tudo isso em suas páginas. É justamente o que faz a sua grandeza. Ainda bem.

O interior do Brasil é muito rico culturalmente. Temos o Campo das Vertentes, chão mineiro desta obra de Sáulo José Alves. Como temos as artesãs do Jalapão, em Tocantins, com sua arte com base no capim dourado. Isso, para não aludirmos às toadas e modas de viola contagiantes pelo nosso sertão afora. Mesmo assim, eu apontaria que um livro como este, a bela obra Zé da Grota e outras histórias, se ressente de um movimento cultural que seja digno dele. E isso passa pela retomada dos suplementos literários e pela atuação de críticos literários novos, da mesma qualidade de Agripino Grieco, Alceu Amoroso Lima, Nelson Werneck Sodré, que tanta falta faz à nossa Cultura. Pois houve um período em que os jornais eram verdadeiras salas de aula, formando e informando o público leitor. Ainda bem que em Tiradentes existe essa pequena editora Aquarius Produções Culturais para entrar nessa briga, ou preencher essa lacuna.   

Infelizmente, o Brasil está sem projeto de nação. Isto é, sem o que poderíamos denominar por contra elite, ou o setor da elite que passa um acordo cultural com as camadas populares, propondo-se a interpretar e mesmo representar os seus anseios por uma vida mais digna. Daí as dificuldades vividas por tantos setores da vida nacional, em particular o setor literário. Reatar com esse fio da meada é imprescindível. Somente assim poderemos voltar a dar o justo valor a uma obra como essa, que merece estar nos Anais da Literatura nacional.    

*Ivan Alves Filho, historiador. 

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