sábado, 24 de maio de 2025

Os culpados e os inimputáveis – Eduardo Affonso

O Globo

Alguém que quebre o protocolo durante evento oficial e cause mal-estar diplomático merece censura pública. Mas, se o desastre tiver sido perpetrado pela primeira-dama, a crítica é tratada como machismo, misoginia

Uma das transformações impulsionadas pelos movimentos progressistas foi a ampliação da nossa sensibilidade para temas que envolvam mulheres, pretos, indígenas, pessoas trans etc. Isso, porém, tem descambado em condescendência, beirando a inimputabilidade.

Alguém que quebre o protocolo durante um evento oficial, aja de maneira inconveniente e cause mal-estar diplomático merece censura pública — dependendo do cargo, demissão por justa causa. Mas, se o desastre tiver sido perpetrado pela atual primeira-dama, a crítica objetiva é tratada como machismo, misoginia. Com isso, séculos de luta por emancipação são jogados no lixo. É paradoxal reivindicar igualdade e, ao mesmo tempo, pleitear tratamento de exceção baseado em gênero. Isso causa mais dano ao feminismo que qualquer ataque conservador.

Sim, as mulheres devem ter voz ativa e as mesmas oportunidades que os homens. As que queiram ser ouvidas na cena política devem se filiar a um partido, se candidatar a cargo eletivo e ganhar protagonismo sustentadas pelo voto. Cada vez mais mulheres fazem isso e se tornam relevantes por seus próprios méritos — não furando fila à custa do sobrenome ou do cargo do digníssimo esposo.

Da mesma forma, o sistema de cotas, tal como aplicado hoje (desvinculado da condição social), virou mero passaporte para vagas nas universidades públicas. É mais fácil pegar esse atalho (solução emergencial para corrigir distorções históricas) que investir no combate à pobreza, na melhoria do ensino fundamental, na conscientização de sermos iguais em dignidade.

Dizem os progressistas que são pelo bem de todos (e felicidade geral da nação) a regulação da mídia, a censura e modificação da linguagem, a reescrita de livros, a domesticação da dramaturgia para que se torne didática com função social (sim, vale tudo para doutrinar). Mas isso só empobrece o debate e infantiliza o público. Democracia pressupõe pluralidade (e o inevitável desconforto com quem pensa diferente) e liberdade de expressão (o risco de ofensa faz parte do pacote). “É proibido proibir”, mote dos libertários, virou coisa de conservador.

O progressista é também do time “Viva a ciência!” — desde que não seja a ciência econômica. Nem envolva a genética. De preferência, excluindo besteiras como linguística e História. Se um estudo mostrar que somos um povo miscigenado, com prevalência da ancestralidade europeia pela via masculina e da africana e indígena pela feminina, não há dedução possível a não ser termos nos originado de um estupro em massa, certo? Errado. Isso é ter uma teoria — e os fatos históricos que se virem para confirmar o que já foi decidido de antemão. (Ciência seletiva é mistificação.)

Nem a Igreja escapa: ela precisaria se alinhar a certas pautas, sob pena de ser tachada de retrógrada (um Papa seria tão mais cristão quanto mais progressista for). Menos: a Igreja tem seus próprios fundamentos e 2.000 anos nas costas. Não se abandona o Levítico assim, de uma hora para outra.

Para tanta culpa no cartório (o racismo estrutural, a violência que nos deu origem, o idioma falocêntrico e colonialista, a misoginia de achar que mulheres também pisam na bola), o que alguns setores progressistas propõem não é a autocrítica, mas a autoflagelação.

Se bobear, ainda farão deste mundo um grande Vale do Cilício.

 

Nenhum comentário: