O Globo
Alguém que quebre o protocolo durante evento
oficial e cause mal-estar diplomático merece censura pública. Mas, se o
desastre tiver sido perpetrado pela primeira-dama, a crítica é tratada como
machismo, misoginia
Uma das transformações impulsionadas pelos
movimentos progressistas foi a ampliação da nossa sensibilidade para temas que
envolvam mulheres, pretos, indígenas, pessoas trans etc. Isso, porém, tem
descambado em condescendência, beirando a inimputabilidade.
Alguém que quebre o protocolo durante um evento oficial, aja de maneira inconveniente e cause mal-estar diplomático merece censura pública — dependendo do cargo, demissão por justa causa. Mas, se o desastre tiver sido perpetrado pela atual primeira-dama, a crítica objetiva é tratada como machismo, misoginia. Com isso, séculos de luta por emancipação são jogados no lixo. É paradoxal reivindicar igualdade e, ao mesmo tempo, pleitear tratamento de exceção baseado em gênero. Isso causa mais dano ao feminismo que qualquer ataque conservador.
Sim, as mulheres devem ter voz ativa e as
mesmas oportunidades que os homens. As que queiram ser ouvidas na cena política
devem se filiar a um partido, se candidatar a cargo eletivo e ganhar
protagonismo sustentadas pelo voto. Cada vez mais mulheres fazem isso e se
tornam relevantes por seus próprios méritos — não furando fila à custa do
sobrenome ou do cargo do digníssimo esposo.
Da mesma forma, o sistema de cotas, tal como
aplicado hoje (desvinculado da condição social), virou mero passaporte para
vagas nas universidades públicas. É mais fácil pegar esse atalho (solução
emergencial para corrigir distorções históricas) que investir no combate à
pobreza, na melhoria do ensino fundamental, na conscientização de sermos iguais
em dignidade.
Dizem os progressistas que são pelo bem de
todos (e felicidade geral da nação) a regulação da mídia, a censura e
modificação da linguagem, a reescrita de livros, a domesticação da dramaturgia
para que se torne didática com função social (sim, vale tudo para doutrinar).
Mas isso só empobrece o debate e infantiliza o público. Democracia pressupõe
pluralidade (e o inevitável desconforto com quem pensa diferente) e liberdade
de expressão (o risco de ofensa faz parte do pacote). “É proibido proibir”,
mote dos libertários, virou coisa de conservador.
O progressista é também do time “Viva a
ciência!” — desde que não seja a ciência econômica. Nem envolva a genética. De
preferência, excluindo besteiras como linguística e História. Se um estudo
mostrar que somos um povo miscigenado, com prevalência da ancestralidade
europeia pela via masculina e da africana e indígena pela feminina, não há
dedução possível a não ser termos nos originado de um estupro em massa, certo?
Errado. Isso é ter uma teoria — e os fatos históricos que se virem para
confirmar o que já foi decidido de antemão. (Ciência seletiva é mistificação.)
Nem a Igreja escapa: ela precisaria se
alinhar a certas pautas, sob pena de ser tachada de retrógrada (um Papa seria
tão mais cristão quanto mais progressista for). Menos: a Igreja tem seus
próprios fundamentos e 2.000 anos nas costas. Não se abandona o Levítico assim,
de uma hora para outra.
Para tanta culpa no cartório (o racismo
estrutural, a violência que nos deu origem, o idioma falocêntrico e
colonialista, a misoginia de achar que mulheres também pisam na bola), o que
alguns setores progressistas propõem não é a autocrítica, mas a autoflagelação.
Se bobear, ainda farão deste mundo um grande
Vale do Cilício.
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