O Estado de S. Paulo
Como sobrevive um país desprovido de
verdadeiros partidos políticos?
Sabe o leitor que, na vida pública, existem indagações fáceis de responder, indagações difíceis e indagações rigorosamente irrespondíveis.
Hoje, eu gostaria de falar sobre uma que tem aparecido nas três categorias. Refiro-me à questão dos partidos políticos. Suponhamos que você vá a Brasília e pergunta a um indivíduo qualquer, escolhido a esmo: o que você entende por partido político? O mais provável é que ele nada responda ou então diga algo assim: partido é um grupo de pessoas que comungam certos valores e se reúnem para tentar realizálos, disputando eleições. Eu retrucaria: um grupo de pessoas que comungam certos valores? De onde você tirou isso? Aqui em Brasília é que não foi, não é?
Aí me dirijo a um segundo indivíduo, ali
mesmo na Esplanada dos Ministérios. O que você entende por partido político? E
ele: “Ora, só pode ser um grupo de sujeitos que fica à espreita, esperando a
chance de destruir o País. Veja o caso da Argentina. Políticos, militares,
trotskistas, anarquistas, achavam que o país era bom demais para o que os
argentinos mereciam. Em vez de vários partidos, vamos trazer o Perón de volta
da Espanha, ele vem com Isabelita, sua segunda mulher e a coloca como
vice-presidente, por precaução, porque já está um pouco velho. Aí, o que
aconteceu? Ora, na hora H, Perón morreu, ela foi posta em prisão domiciliar,
todos quebraram o pau e pronto: não têm mais país, mas também não têm essa coisa
abominável a que chamam partidos”.
A essa altura, resolvi dirigir-me a um senhor
bem aparecido, com cara de cavalheiro, obviamente uma pessoa letrada. Fiz-lhe a
pergunta e ele, com um sorriso de felicidade por ter sido inquirido,
respondeu-me: “Ora, isso é comigo mesmo”.
E prosseguiu: “Partidos são a engrenagem
fundamental da democracia representativa. Sem partidos, não há democracia. E a
recíproca é verdadeira: sem democracia não há partidos, porque ditaduras não os
toleram”.
Formidável, respondi a ele, mas o que,
exatamente, é um partido?
Respondeu-me o cavalheiro que iríamos muito
longe se fôssemos discorrer sobre outros países. Fiquemos no Brasil. Desde
logo, o partido tem de ter caráter nacional, ou seja, não admitimos partidos
regionais. Uma vez constituídos, têm direito a financiamento (recursos do Fundo
Partidário) e a acesso gratuito ao rádio e à TV para divulgar seus programas,
pois não é concebível que nosso imenso eleitorado compareça às urnas desprovido
de informações idôneas sobre as alternativas entre as quais terá o direito e o
dever de fazer sua escolha. E, naturalmente, a Constituição não estabelece
restrições quantitativas quanto ao número de partidos.
Ótimo, ótimo, lhe respondi, mas continuo sem
uma ideia exata sobre o que é, de fato, um partido. “Ora – respondeu-me – é
muito simples. Primeiro, o grupo interessado em formar um partido precisa
registrar sua intenção no Cartório de Pessoas Jurídicas do Distrito Federal. Observe
que aí ele já começa a existir. Depois o referido grupo deve comparecer ao
Tribunal Superior Eleitoral portando uma senhora maçaroca. Um catatau do qual
haverá de constar os estatutos e o programa do partido, bem como algumas
centenas de páginas com assinaturas de eleitores de vários Estados, sendo essa
a prova do indispensável “caráter nacional” da recém-criada agremiação”.
E daí em diante, o que acontece? “Ora”,
respondeu-me o interlocutor com a mesma distinção que demonstrara até esse
ponto. “Daí em diante, desde que conquiste o desejado número de assentos
parlamentares, o partido contribui para o bem do País na exata proporção da
qualidade de seus membros. Tivemos em nossa história partidos que fizeram
coisas admiráveis. É verdade que esses, nos dias de hoje, rarearam. Ocupam-se
principalmente em inserir na legislação os chamados privilégios
corporativistas, quero dizer, normas legais para a proteção e a progressão
profissional de pequenos grupos, que os recompensam com apoio eleitoral; isso,
naturalmente, nos níveis nacional, estadual e municipal. Dado que a vida
política edulcora o coração das pessoas, muitos também se esforçam para
arranjar empregos para amigos e parentes. E, sobretudo, trabalham com afinco
para influenciar o Orçamento federal anual, pois, afinal de contas, nada há de
mais execrável que a mania da chamada “área econômica” de querer equilibrar a
arrecadação e o gasto.
A organização jurídica, como veem, é
impecável. Nada escapou à atenção da Constituição de 1988 e à subsequente legislação
ordinária. O único senão é que continuamos aprisionados na chamada “armadilha
do baixo crescimento”. Incapaz de crescer pelo menos dois e meio por cento ao
ano, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa já pífia renda anual per
capita. Com Lula na Presidência, pleiteando a reeleição e uma entidade chamada
Centrão funcionando como a estufa que cedo ou tarde nos trará uma plêiade de
estadistas, o distinto cavalheiro que tão bem me atendeu em Brasília terá de me
explicar melhor como sobrevive um país desprovido de verdadeiros partidos
políticos. •

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