sexta-feira, 22 de junho de 2018

José de Souza Martins: Cadê a graça?

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Do humor e da gozação das conversas de botequim ao rádio, à TV e às publicações impressas, nós, brasileiros, durante boa parte de nossa história republicana, soubemos não perdoar os políticos. Somos grandes desancadores dos que merecem ser desancados.

Sempre tiveram o que mereciam, no corrosivo humor popular. Piadas sobre políticos e sobre a política, mesmo que muito mais pobres do que já foram, ainda lhes demole a pose e a prosa. A piada política tem sido entre nós instrumento de consciência política, expressão do que pensamos sobre os equivocados autores de iniciativas descabidas. Ou os beneficiários de privilégios ofensivos a quem depende da Bolsa Família para comer um pão. O humor político popular está em decadência entre nós. A crise de humor é um dos indícios sérios da profundidade de nossa crise política. Os políticos já não merecem a misericórdia do riso.

Até 1964, éramos mestres em rir dos políticos e da política. Mesmo nas horas do golpe de Estado, que nos mergulharia em longa e sombria ditadura, fazíamos piada sobre os novos donos do poder. Conheci um gaúcho que era capaz de passar uma noite inteira contando anedotas sobre os poderosos da hora. Todas muito finas e muito bem elaboradas, caricatura do modo desencaixado como os novos governantes se situavam no interior de funções bem diversas daquelas a que estavam acostumados. Governar é bem diferente de comandar. Esse desencaixe fazia dos atos e gestos dos protagonistas do poder uma piada na própria ação. Não era preciso inventá-la.

Como no caso de um pronunciamento do ministro da Guerra, na televisão. Explicou ao povo que a revolução de 31 de março fora necessária porque o país estava à beira do abismo. Com ela, porém, dera um passo à frente. Rir era uma parte substantiva da política brasileira e da consciência crítica dos brasileiros.

Antes disso, não era rara a gargalhada causada tanto pelos políticos dos poderes nacionais e regionais, quanto pelos régulos locais, prefeitos, vereadores e candidatos. Como na minha cidade, nos anos 1950, em que um candidato explicou aos berros que, se eleito, acabaria com "long-plays" do município. Descobriu-se, depois, que ele se referia aos então chamados playboys. Ou um vereador da Câmara local, pessoa simples, pedreiro e evangélico, em cujo primeiro discurso propôs um voto de louvor ao autor da Bíblia. O presidente recomendou que quem fosse a favor ficasse como estava e quem fosse contra se manifestasse. A moção foi aprovada por unanimidade. Pediu, então, que o proponente entregasse à secretaria o endereço do destinatário.

Já vimos de tudo: senador cantando ou brincando com caminhãozinho na tribuna. E até um presidente da República muito temporário mandando construir às pressas um aeroporto em sua pequena cidade do sertão para, nos poucos dias de sua presidência acidental, lá descer no avião presidencial. O aeroporto recebeu um nome: "Aeroporto Internacional Fulano de Tal", ele mesmo.

O clima da ditadura começou a matar ou a mutilar o nosso bom humor. Especialmente após a truculência do Ato Institucional nº 5 e o recrudescimento da repressão, paramos de rir ou ríamos contrariados. O país já não tinha razões para o riso. Com a redemocratização, em 1985, talvez voltasse a rir como antes. Mas havia muitos ódios e frustrações acumulados, que trancaram a alma do brasileiro para a alegria da política e com alegria nela se envolver.

A ditadura transformou o povo brasileiro num povo carrancudo, incapaz de rir de quem o oprime ou de quem se candidata a funções públicas que já foram as de gestão criativa do destino comum. As que se transformaram, para muitos, em funções de capatazes da República. Uma mentalidade de senzala se difundiu entre nós.

Quando a abertura política supostamente nos restituiu o direito de rir, o que se viu é que a carranca se transformou em ideologia partidária e alternativa, de esquerda e de direita. A equivocadíssima concepção de democracia que se difundiu foi a do ressentimento. Não só contra os inimigos de ontem, mas contra os diferentes e eventualmente adversários de hoje. O caretismo ideológico reinventou o Brasil como um país que já não é capaz de compreender que, aqui, a competência para rir da política e dos políticos é a principal ferramenta do pensamento crítico e da práxis política.

Como seria um presidente que confunde suas funções com a de delegado de polícia? O povo andaria algemado? Ou como seria um presidente atrás das grades? Quanto custaria ao país colocar grades ao redor do Palácio da Alvorada? Ou, como seriam as tornozeleiras de um presidente: verde-amarelas? Em vez de limusine, teria ele um camburão presidencial? Com emblema da República na porta?
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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